A indústria brasileira projeta exportar 40 mil motocicletas em 2019, menos de 4% do que espera produzir no ano. Essa tímida participação das vendas externas é hístórica no setor, que concentra suas fábricas no Polo Industrial de Manaus (AM). Raramente bateu nos 10% e, quase sempre, fica pouco acima dos 5%.
Essa proporação chama a atenção de Antônio Delfim Netto, ministro de diversas pastas em vários governos e que acompanhou de perto o nascimento da Zona Franca de Manaus(ZFM), de onde sai a quase totalidade das motocicletas brasileiras. Rigorosamente de perto: afinal, coube a ele, como Ministro da Fazenda então recém-empossado, colocá-la em prática em março de 1967.
Formado pela Universidade de São Paulo em 1951, Delfim, aos 91 anos, avalia que, em suas cinco décadas, a ZFM cumpriu bem o seu papel, especialmente os aspectos socioambientais, e assegurou a formação de mão de obra, expertise e infraestrutura industrial destacada.
O professor emérito da Faculdade de Economia e Administração da USP, entretanto, defende que o modelo precisa ser aprimorado para assegurar sua própria evolução em ambiente internacional. A ZFM, avalia, deveria se tornar uma zona franca de fato, produzindo mais para o mercado externo do que para o Brasil.
A ZFM foi criada há 52 anos, quando o senhor era o Ministro da Fazenda. Qual a lembrança daquele momento?
A ZFM foi criada, de fato, pela Constituição de 1967, promulgada em janeiro daquele ano e colocada em prática em março seguinte. Eu apenas a implementei atendendo ao dispositivo constitucional. Não me recordo de quem foi a ideia, mas seguramente era de alguém que tinha muita influência a ponto de colocá-la na Constituição (risos). Creio até que o Roberto Campos [economista] tem alguma coisa a ver com isso. Mas havia a ideia de criar alguma forma de atividade econômica na região que gerasse desenvolvimento e ao mesmo tempo impedisse a degradação da floresta.
A ZFM começou a tomar forma mesmo ainda no governo do Juscelino Kubitschek, por meio de uma lei de 1957. Já existia então essa visão da necessidade de uma ação no Norte do Brasil…
Não sabia que havia essa lei da época do Juscelino. Porque ela foi praticamente criada do zero em 1967, não havia nada. Mas não tenha dúvida: o propósito era criar empregos para retirar as pessoas da floresta e concentrá-las em uma atividade urbana. E, já no início, teve sucesso e sempre contou com grande apoio político. Creio que o maior problema é que não se tornou efetivamente uma área de livre comércio, como são as zonas francas em outros países. Acho que poderia ter se tornado muito maior, caso estivesse mais ligada ao comércio externo.
Mas o senhor consegue imaginar aquela região sem a ZFM hoje?
Essa questão não existe, porque cada vez que fazemos uma mudança, ela é definitiva. No caso da ZFM, ela urbanizou, criou uma atividade industrial local, expertise, mão de obra. Isso não é um filme que dá para rodar para trás. Agora acredito que há apenas um caminho: aperfeiçoar, torná-la ainda mais dinâmica, voltada mais para o mercado externo.
Como seria esse modelo?
As zonas francas são assim: há plena liberdade de importação para poder exportar também livremente e sem qualquer tributação. São praticamente territórios externos.
No começo dos anos 70, a principal atividade na ZFM era o comércio, os brasileiros seguiam pra Manaus para comprar eletrônicos. Já havia alguma oposição, uma proposta de ajuste no modelo naquela época?
Para ser honesto, acho que nunca houve uma grande preocupação com a ZFM. Ao contrário, havia uma oposição imensa — e continua havendo. A percepção era de que o Brasil estava incentivando fábricas no lugar errado. Uma fábrica de videocassete deveria estar São Paulo, não em Manaus. Isto porque a zona franca não atuava como tal, ainda que tenha sido concebida com a melhor das intenções, propondo a criação e desenvolvimento de enormes recursos físicos, instalações industriais, equipamentos, formação de trabalhadores especializados. Tudo isso aconteceu, mas ela nunca produziu o impulso externo, que é o que se imagina de uma zona franca.
Como assim?
Esperávamos que as empresas aproveitassem a localização para importar e exportar. Um pedaço, seguramente, ficaria no Brasil, mas o grosso seria exportado para o mundo e teríamos desenvolvido lá não o que temos hoje, mas algo dez, quinze, cinquenta vezes maior. É só olhar o que acontece nas zonas francas espalhadas pelo mundo. O maior cliente das indústrias de Manaus é o próprio mercado brasileiro. Mas, de fato, do ponto de vista socioambiental funcionou muito bem. Acredito que ZFM ajudou a reduzir a degradação da floresta, o que é algo fundamental.
“Há apenas um caminho para a ZFM: aperfeiçoar, torná-la ainda mais dinâmica, voltada mais para o mercado externo.”
Mas a deficiência nas exportações é um problema de todo o Brasil também. Só exportamos commodities.
O Brasil já foi um grande exportador de manufaturados. Nos anos de 50 a 80, a exportação de manufaturados com relação à exportação mundial crescia 15% ao ano. Deixamos de ser exportadores a partir do Plano Cruzado, por um erro da política econômica, quando o governo, depois de quarenta anos, voltou ao usar a taxa de câmbio para controlar a inflação. Isso até hoje. Basta lembrar o que se fez no Plano Real, que manteve o câmbio supervalorizado, mas com qual instrumento? Com a maior taxa de juros do universo.
Uma reforma tributária não poderia colocar esse modelo em risco também?
A reforma tributária vai cuidar do Brasil e não existe a menor hipótese de se aprovar uma reforma constitucional que anule a ZFM. Porém, diria que uma reforma tributária terá alguma influência na ZFM. Então é preciso pensar como assegurar o seu futuro.
O que senhor imagina?
Acho que o Brasil tem que se espelhar nas zonas francas de outros países, nos exemplos externos. Elas importam e exportam livremente. Se fosse para atender o mercado brasileiro, era melhor ter as fábricas mais perto dos consumidores, os custos seriam muito menores. Seria interessante formar um grupo de economistas e engenheiros que estudassem os exemplos chineses, coreanos, que são territórios livres. Acho que Manaus tem uma boa localização, está 4 mil quilômetros mais próxima dos grandes mercados externos. É mais próxima deles do que do Brasil (risos). Está perto do Panamá, um caminho mais curto para o Oriente, e, claro, também dos Estados Unidos e da Europa. É muito provável que possamos ter algo muito mais eficaz e cinquenta vezes maior.
Não poderia ter um plano B em relação a essa ideia, no sentido de criar ali uma espécie de zona de desenvolvimento regional que não fosse exatamente um modelo de zona franca como essas que o senhor citou?
A ZFM já nasceu como um modelo de desenvolvimento regional, foi criada com esse espírito. Mas porque ela não exporta motocicletas para o mundo? Anualmente, exportamos, em média, apenas 50 mil motos das mais de 1 milhão de unidades produzidas. Por que as fabricantes não exportam maciçamente para os Estados Unidos, por exemplo? Talvez porque seja mais vantajoso exportar diretamente da matriz no Oriente ou de outras unidades.
Como é possível essa transformação?
Criando condições para que as empresas instaladas lá não vivam quase que totalmente do mercado brasileiro. Podem e devem vender para o Brasil, mas de acordo com o que ele representa na economia mundial. Poderíamos produzir 5 milhões de motocicletas, e não apenas 1 milhão, mas apenas uns 20% para o Brasil. Os 80% restantes iriam para os Estados Unidos, Nicarágua, França etc. É assim que funciona. Uma zona franca é quase uma extraterritorialidade, uma região fora do país, onde não há impostos e o sistema tributário do país não interessa. Aqui eu me instalo para fazer motocicleta e importo tudo o que eu quiser e depois exporto.
“Poderíamos produzir 5 milhões de motocicletas, mas apenas uns 20% para o Brasil. Os 80% restantes iriam para os Estados Unidos, Nicarágua, França etc. É assim que funciona uma zona franca.”
Sem a obrigatoriedade de um processo produtivo básico?
Como disse, é um outro princípio.
Os anos iniciais da ZFM foram marcados pela proibição das importações e forte estímulo à produção para o mercado interno. Isso não acabou alterando o próprio conceito de zona franca?
Naquela época, o Brasil estava crescendo enormemente, por isso essa produção mais direcionada. Se não existisse a ZFM, tudo estaria sendo produzido em Minas Gerais, São Paulo ou Paraná. A gente tem que entender que agora é preciso transformar a ZFM. Quando o Brasil crescia 7,5% ao ano, ela era um infinitésimo de ordem superior e cumpria um papel social. O custo era mínimo. Mas faz trinta anos que o Brasil cresce 2% ao ano.
Não haveria uma reação muito forte de outros entes da federação contra esse modelo que o senhor defende?
A autorização já existe, é constitucional.
O senhor identifica algum segmento que teria um ganho muito expressivo com esse modelo exportador?
É preciso pesquisar. Mas se for uma fábrica de botões, ela tem que pensar em exportar botões para o mundo inteiro. E para o Brasil, que representa 2% da economia mundial, deve enviar 2% desses botões. Esse é o princípio. Não vejo nenhum risco para a ZFM, a não ser a estagnação. A tecnologia vai avançando e as vantagens vocacionais, diminuindo pelo próprio processo tecnológico. É importante que pensemos de uma forma muita mais radical do que se vem pensando. Começar já com uma indústria 4.0, muito mais desenvolvida do que a nacional.
Mas as empresas que estão lá nunca identificaram essa vertente da exportação?
Elas não exportam por algum motivo. Precisamos descobrir qual é. Não acredito que uma empresa multinacional venha para o Brasil e não queira aproveitar todo o mercado possível. O que pode ser é que a matriz exporta diretamente para esses mercados. E não exportam diretamente para cá porque é mais vantagem enviar da ZFM. E tudo isso está na planilha.
Foto: AutoIndústria
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