Quando parte da China entrou em confinamento e materiais, peças e equipamentos desapareceram do mercado, a fragilidade das longas cadeias globais de suprimentos tornou-se evidente e mostrou que a globalização e o desenvolvimento dos veículos terão de ser redesenhados.
O ano de 2020, com a amplitude da pandemia da Covid-19, estará marcado na história de todos nós. Temos como desafio não apenas um exercício de revisão de nossas instituições, mas também, em especial, do modo em que vivemos em sociedade.
A globalização, com seu consequente trânsito intenso de itens e pessoas, é contraposta com o fechamento de fronteiras e com as (necessárias) políticas de isolamento e quarentena impostas pelos mais diversos países para conter a propagação do vírus.
Com isso, três comportamentos da economia mundial pós Covid-19 já podem ser antecipados:
• A elevação global de dívidas públicas e privadas;
• Aceleração da digitalização;
• Reversão parcial da globalização.
O primeiro resulta do papel do setor público como assegurador do bem-estar coletivo (principalmente mediante a catástrofes), políticas de governo a fim de achatar a curva de contágio e, por fim, o controle sobre o vírus – estas ações deixarão um legado maciço na dívida do setor público no mundo inteiro.
Com o menor nível de comércio, cai a arrecadação de impostos e são geradas maiores despesas nos âmbitos sociais e de saúde. No lado do setor privado, o endividamento ou postergação dos pagamentos serão o modo de sobreviver à súbita parada, se o resultado não for bancarrota ou fechamento.
Cortar gastos para conter o déficit fiscal será muito caro em termos de “capital” político, especialmente depois de uma crise que deixará mais acentuada e escancarada a desigualdade social e que ocorre depois de um longo período de restrição econômica e reconstrução em muitos países.
O segundo resultado da pandemia será a aceleração da digitalização em processos de produção e no provimento de serviços públicos e/ou privados. As tendências preexistentes com a introdução de novas tecnologias, que já reconfiguravam as cadeias de produção com maior evidência em economias mais desenvolvidas, ganharam força em âmbito global devido às medidas impostas ao combate à proliferação do vírus – políticas de isolamento e quarentena.
Os processos de digitalização que se concretizaram durante a pandemia e a integração dos locais de trabalho e residência tendem a permanecer, em grande escala, definitivamente, estendendo-se a áreas como educação.
Por fim, como terceiro impacto, provavelmente haverá um retrocesso em termos de capacidade integrada de produção além das fronteiras de cada nação, que marcaram a globalização e sofrem uma reversão, não só agora com a pandemia, mas desde a crise financeira global.
Em muitos casos, inclusive em equipamentos médicos e medicamentos, além de itens de alta tecnologia, a eficiência e redução de custos cederá prioridade à segurança contra os riscos de abrupta interrupção dos fluxos de fornecimento. Já se vê um papel principal dessa questão com a intensificação da disputa entre os Estados Unidos e China.
No âmbito automotivo não é diferente.
Por muito tempo, os principais fabricantes de veículos do mundo se autodenominavam montadoras globais — e com razão. Modelos globais montados em um mundo “cada vez menor” (mais interligado) foram direcionados a públicos cada vez mais alinhados com suas propostas.
Construindo veículos em plataformas globais, em fábricas padronizadas suportadas e acompanhadas por gigantes – Tier 1 – com cadeias de suprimentos enxutas e muitas vezes “longas”, as montadoras pareciam buscar a expansão, globalização e volume de vendas a qualquer custo.
No entanto, ser uma montadora global e manter tais operações ficou cada vez mais caro e questionável.
Os desafios à frente da indústria automobilística foram crescendo – a necessidade de cumprir regulações cada vez mais rigorosas; a necessidade de mostrar a liderança nas tecnologias de ACES (Autônomos, Conectados, Elétricos e Compartilhados) emergentes; a luta para sustentar a participação de mercado e a lucratividade nos mercados tradicionais e segmentos – tudo isso acompanhado da queda nas vendas, à medida que os consumidores questionam até mesmo a necessidade de possuir um carro. Manter a presença em mercados altamente competitivos a quase qualquer custo não se tornou mais uma opção.
Consideremos a aliança de Renault, Nissan e Mitsubishi, que definiu seu foco em eficiência, em vez de volume. O resultado foi a distribuição das responsabilidades regionais: a Nissan será referência na China, América do Norte e Japão; Renault na Europa, Rússia, América do Sul e Norte da África e a Mitsubishi Motors atuará no Sudeste Asiático e Oceania.
A mensagem, portanto, é clara: a chave para a sobrevivência não está necessariamente em uma fusão de montadoras globais, mas em uma aliança mais integrada com especialistas de cada região e setor.
A tendência é confirmada pela aliança entre Ford e Volkswagen em uma variedade de projetos, inclusive veículos elétricos (EV’s), veículos autônomos (AV’s), comerciais leves (LCV’s) e Pick-ups Mid-size.
A indústria automobilística entrou agora em uma era de novo realismo, para a qual as perdas a longo prazo ou o fraco desempenho não são mais tolerados.
Além das inúmeras pressões comerciais e regulatórias já citadas, existem outras questões mais amplas que orientam as estratégias globais das montadoras, incluindo geopolítica, protecionismo, guerras comerciais e, agora, é claro, a pandemia do novo coronavírus.
Quando a cidade de Wuhan, por exemplo, entrou em confinamento, a fragilidade das longas cadeias globais de suprimentos tornou-se evidente. As primeiras paralisações de montadoras na Europa foram atribuídas à escassez de peças oriundas da China e as paradas de fábricas nas Américas ocorreram inicialmente devido a interrupções no fornecimento de peças da Europa.
Mas, NÃO! A pandemia do coronavírus não criou fragilidade na indústria automotiva global – simplesmente expôs condições pré-existentes, levantando questões urgentes e importantes para as montadoras sobre suas estratégias.
Com a maioria dos mercados enfrentando a perspectiva de uma queda nas vendas pós Covid-19, poderemos ver alguns fechamentos de operações não lucrativas ou incapazes de se adequar à nova realidade. No entanto, o destino depende das estratégias empregadas para gerar liquidez, resistir à pandemia, sobreviver à recessão e oferecer ao mercado produtos alinhados à nova demanda do consumidor e tecnológica.
Por isso, prever o mercado em meio a tantas mudanças é impossível, até que se tenham dados confiáveis disponíveis.
Texto: Murilo Briganti, Bright Consulting
Foto: Pixabay