Artigo

Importar ou produzir localmente?

Uma reflexão a ser feita não só a respeito de veículos, mas também sobre a indústria de componentes

Há 15 anos, o Brasil possuía três fabricantes de alternadores e exportava veículos produzidos exclusivamente no país para mercados além da América do Sul. O que mudou de lá para cá e quais as perspectivas para o futuro?

A globalização teve fortes efeitos no mercado brasileiro, com a transferência de muitos componentes e subconjuntos para sourcing asiático. O painel de instrumentos é um exemplo típico e, hoje, pelo menos 70% dos veículos brasileiros carregam componentes do cluster fabricados pelos chineses – vale lembrar que há 20 anos, veículos aqui produzidos usavam conjuntos com menor tecnologia, todos locais.

Trata-se de um caso em que plantas gigantescas fabricam quantidades imensas de componentes, alcançando economias de escala que poucos conseguem superar. Ainda em autopeças, no fim do século passado, o Brasil era um hub fornecedor de sistemas de freios para todo o mundo, devido ao amplo sortimento de ferro fundido e tecnologia brasileira desenvolvida nesses sistemas. Hoje, deixamos de exportar conjuntos de freios.

Perdemos uma competitividade que já havia sido conquistada. O que aconteceu? A resposta está na falta de atualização e a absorção de fornecedores brasileiros por organizações globais, que, em grande parte, não tiveram interesse em manter o desenvolvimento por aqui, devido à falta de competitividade e pelas arquiteturas já consolidadas em outros lugares.

Os fornecedores foram absorvidos por não comportar individualmente a capacidade de desenvolver e investir. Os acionistas locais saíram ganhando ao vender suas empresas e aplicar os recursos em atividades de menor risco.

O Brasil já exportou Volkswagen Passat para o Iraque, Volkswagen Voyage para os EUA, Fiat Uno para a Itália e Ford EcoSport para o México em grandes volumes. Hoje, nosso único grande cliente internacional é a Argentina.

Parte da perda de mercado externo é explicada pela expansão do mercado brasileiro até 2013, com maior utilização da capacidade nas vendas internas, muito mais lucrativas àquele momento. Ocorre que a exportação de veículos é um tipo de transação de longo prazo e muito concorrida. Países-clientes mal atendidos se ajustam rapidamente e passam a comprar de outras fontes.

Hoje, os produtos fabricados por aqui se assemelham cada vez mais aos congêneres de mesma marca em outros países, o que torna a competição ainda mais difícil. Como o Renault Sandero brasileiro, por exemplo, pode competir com a versão romena, produzida em volumes muito maiores?

O mesmo raciocínio se aplica ao Chevrolet Onix, Ford Ka, Toyota Yaris, Hyundai Creta, todos produtos de grande volume por aqui, desenvolvidos e produzidos simultaneamente em países de baixo custo e que, por isso, conseguem capturar as oportunidades de exportação.

A engenharia brasileira também foi transferida para outros países, resultando em grande onda de demissões nas montadoras. Hoje, existem honrosas exceções onde, ontem, o produto exclusivamente brasileiro era lugar comum. Ficaram aqui apenas as operações de “tropicalização” que envolvem materiais, cores, séries especiais e motores flex.

O que nos espera à frente?

A pandemia da Covid-19 mostrou as dificuldades de se ter a base de suprimentos de componentes do outro lado do planeta. Uma cultura mais protecionista forçará as montadoras a localizar uma parte maior de suas atividades no Brasil, condicionadas a um menor risco logístico. Esse movimento, porém, terá um custo que ainda não é possível avaliar.

A relação entre dólar e real também deve favorecer a formação de bases locais, afinal nunca foi tão barato investir no Brasil, mas serão fornecedores globais produzindo por aqui, não empresas brasileiras. Se a relação cambial se deteriorar, esses players vão embora novamente. Desconectadas de fonte global de tecnologia e com capital nacional, dois terços das empresas de Tier 3, base do fornecimento de componentes, poderão desaparecer.

No caso de veículos, o raciocínio é mais complexo. O Brasil já possui a escala para fabricar grandes volumes de um mesmo modelo nos segmentos compactos e SUVs. A fabricação desses modelos deve permanecer protegida a longo prazo, mas todos os outros segmentos sofrem grandes desafios.

A negociação bilateral entre União Europeia e Mercosul fará diminuir as barreiras tarifárias a partir de 2026, tornando mais competitivos os veículos produzidos em países eficientes do Velho Mundo. Virão os veículos médios e os premium, que têm por aqui uma demanda restrita nenhuma chance de competir nesses segmentos.

Qual a oportunidade para o Brasil, afinal? Tornar-se tão eficiente na produção de carros e SUVs compactos, que a exportação, a partir do Brasil, volte a ser viável, uma vez que os problemas de competitividade sejam adequadamente resolvidos. Idealmente, a produção de modelos exclusivos seria de grande contribuição.

Resta saber se as marcas internacionais teriam interesse em fazer do Brasil um polo de produção como foi no passado. Aí entram as estratégias governamentais e parece que ninguém pensa no assunto no momento. Temos um grande mercado interno para alavancar a exportação de determinados modelos.

O Brasil precisa ser capaz de desenvolver a estratégia para viabilizar esse plano. Os principais atores precisam ter a visão estratégica que que permita endereçar o debate na direção de adequar as políticas do setor para o aumento da competitividade e aumentar o protagonismo do setor.

Durante os tempos de vacas gordas, a indústria nacional parece ter esquecido uma lição importante: independentemente da cotação do dólar ou do humor do mercado interno, o cliente de exportação deve ser tratado estrategicamente e preservado.


Cassio Pagliarini, Bright Consulting


Foto: Pixabay

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