Artigo

Um caminho sem volta

O distanciamento social e a digitalização dos serviços tornaram o carro usado a bola da vez durante a pandemia

Poucos segmentos foram tão fortemente afetados pela pandemia quanto o mercado de carros usados. Em abril, após o fechamento das lojas, foram vendidos 199 mil veículos usados, uma queda de 78% ante os 901 mil comercializados no mês anterior.

Comerciantes, principalmente os de menor porte, ficaram atônitos diante da ameaça de uma paralisação total e prolongada dos negócios. Afinal, todo mundo pesquisa carro pela internet, mas, na hora de fechar o negócio, fazer o pagamento, especialmente se tiver financiamento no meio, a esmagadora maioria dos consumidores ainda prefere (ou preferia) ir até à loja e ter o tête-à-tête com o vendedor.

No caso de veículos novos, a transposição para o mundo virtual é mais simples, já que carro zero quilômetro é uma commodity e tem a garantia da fábrica. O carro usado, não. Ele é único. Como comprar um automóvel sem garantia da fábrica, sem ir até a loja, sem ver com os próprios olhos as pequenas batidinhas na lataria, a condição dos bancos, sem sentir o cheiro do interior com as portas fechadas? E se o pagamento envolver outro veículo na troca, e que também terá de ser avaliado?

Todas essas questões, aparentemente intransponíveis, foram superadas em poucas semanas, depois que as prefeituras e governos estaduais decretaram quarentena e fechamento do comércio. A pandemia forçou o processo de digitalização, e esse é um caminho sem volta. Todos que precisavam comprar ou vender um veículo usado foram obrigados a buscar soluções para resolver o problema.

E as soluções vieram. Parte delas já existia, mas ainda não era usada em larga escala. Outra parte foi adaptada ou criada. Os serviços de laudo – que documentam todas as características do veículo, inclusive os defeitos, por meio de fotos e vídeos –, até então pouco procurados, tornaram-se preciosos no processo de vendas de usados.

Munido com um celular, o funcionário da empresa de laudos esquadrinha todos os pontos relevantes do carro, a depender do serviço contratado, em cerca de uma hora. Em certos casos, o trabalho é tão criterioso, que a empresa certificadora chega a garantir o veículo no que tange seu histórico e condição estrutural. Além de dar segurança para as partes envolvidas na transação, esse tipo de documento aumenta a transparência da operação.

O fato é que o cliente já tinha o desejo de digitalizar o processo de venda e de compra do usado. As dificuldades imaginadas, no entanto, retardavam a mudança. O processo de pagamento, realizado por meio de plataformas integradas a bancos, também se transformou em realidade. Instituições que, antes da pandemia, fechavam 15% dos contratos de crédito por meio digital passaram a “assinar” 85% dos financiamentos de veículos digitalmente.

A adesão às ferramentas digitais acabou fazendo com que o carro usado se tornasse a bola da vez no meio da pandemia. Por um lado, as pessoas estão menos dispostas a compartilhar meios de transportes e passaram até a substituir viagens de avião – de curta e média distâncias – por viagens de carro.

Com isso, os modelos mais procurados deixaram de ser os menores e mais baratos. Hoje, os top de buscas são os que oferecem mais conforto e bagageiros maiores – e preços mais altos, portanto. Resultado: o veículo usado tornou-se uma opção mais racional em termos de preço, porque o consumidor está apreensivo em relação à retomada da economia e quer gastar menos.

A venda de usados, que despencou no fim de março chegando a cair 80%, começou a se recuperar em maio e em junho e julho apresentou volumes até maiores do que os verificados no mesmo período de 2019.

A digitalização também acertou em cheio o processo de pós-venda. Mais uma vez, ferramentas já disponíveis, mas pouco usadas, entraram em campo. Aplicativos que enviam alerta sobre as revisões que devem ser feitas e que agendam a entrada do veículo na oficina tornaram-se essenciais para revendedores e clientes.

Esse tipo de ferramenta também permite que o carro seja retirado na residência do cliente por uma plataforma, que devolve o veículo à garagem do dono após a revisão ou o conserto. O pagamento pelos serviços pode ser feito com segurança pelo aplicativo. Ou seja, é possível fazer tudo sem sair de casa. A comodidade que já se sabia ser possível, mas que não era praticada, virou realidade por conta da necessidade.

Os efeitos da digitalização recaíram também em atividades como eventos de lançamento de novos modelos. As fabricantes, que gastavam milhões de reais em aluguel de hotel, buffet, decoração, contratação de bandas e toda estrutura de recepção de concessionários e da imprensa especializada, descobriram formas mais baratas e, muitas vezes, mais efetivas de colocar seus novos produtos na praça.

Os eventos virtuais mostraram que precisam de tanto ou mais profissionalismo que os presenciais, e podem alcançar um maior número de “convidados” que as festas convencionais de lançamento. Podem, na verdade, atingir o cliente final, não apenas os convidados para a cerimônia. Durante a pandemia, a Mitsubishi lançou a nova Pajero, a GM, a nova Blazer, a Fiat, a nova Strada e a Land Rover, a Defender.

Aparentemente, nada será como antes.


Ricardo Bonzo Filho, CEO do iCarros 


 

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Bright Consulting

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