O Kwid não é bem o que parece ser. Quer ser o SUV dos compactos, mas nunca foi – nem mesmo em versão míni. A Renault afirma que é um compacto que não é (tão) pequeno, ainda que suas dimensões comprovem a pequenez. Nasceu para ser “popular”, mas nem isso pode-se dizer que é. Lançado no Brasil em 2017 como produto que democratizava o acesso a um carro zero-quilômetro com o apelo mais desejado do momento, a identidade visual SUV, ainda tenta se parecer com o que representou, mas também não é mais.
Segundo a Renault, nos últimos cinco anos o Kwid representou para muitas famílias a concretização do sonho do veículo zero-quilômetro, 50% dos clientes vieram do mercado de usados e para 23% o subcompacto foi o primeiro carro da vida – ou seja, 73% nunca tinham comprado um modelo zero antes. Esses porcentuais podem até ser mantidos daqui para frente, mas para um menor contingente de pessoas.
O lançamento semana passada do repaginado Kwid 2023 evidencia o fim do dito carro popular no Brasil. A começar pela versão “pelada” Life, que para usar uma palavra da moda foi “cancelada”, porque representava só de 1% a 2% das vendas da gama, o que segundo a Renault indica que o consumidor brasileiro não quer mais modelos tão pobres em tecnologia e equipamentos.
Não é tão simples assim. As fabricantes também não querem e não podem vender carros pelados porque isso não é mais economicamente viável. A legislação brasileira de emissões e segurança evoluiu, exige a incorporação de tecnologias que escapam à limitação de preço de um veículo popular rudimentar como era há 10 anos.
A Renault teve de adaptar seu produto de entrada à essa nova realidade e à sua própria estratégia global, o plano Renaulution apresentado no ano passado, que consolida a desistência de vender grandes volumes de carros baratos para focar em modelos de maior valor agregado – isso em todo o mundo, incluindo o Brasil.
Ainda que permaneça na porta de acesso ao mercado de zero-quilômetro, a primeira renovação do Kwid está enquadrada na nova ordem mundial: vender menos, lucrar mais. Bruno Hohmann, vice-presidente de vendas e marketing da Renault do Brasil, confirma que a renovação do subcompacto está alinhada com a estratégia global da empresa: “O Renaulution foca nos segmentos mais altos e o Kwid é peça fundamental na entrada dessa nova linha de produtos”, informa. Ou seja, a “entrada” foi reposicionada para cima.
Valor agregado
Para além da reetilização visual da grade dianteira, com uso de conjunto óptico que inclui novo farol de dupla parábola e lanternas/DLR com assinatura luminosa de LED – a renovação do design é assinada pela equipe brasileira da Renault, que venceu concorrência global do grupo –, o novo Kwid incorpora sistemas de segurança, conforto, conectividade, entretenimento e até iluminação que há poucos anos só eram encontrados em carros de gama superior. No conjunto, o Kwid modernizou o visual e elevou seu patamar tecnológico, mas o preço subiu junto.
O subcompacto agora parte de R$ 59.890, mais conhecido como “quase R$ 60 mil”, na versão Zen. Pegadinha: a Renault diz que manteve inalterado o preço da opção mais barata do modelo, mesmo com a incorporação de mais tecnologia, mas não existe almoço de graça. A tabela já tinha sido reajustada logo antes do lançamento da nova gama. Para se ter ideia, em agosto de 2021 o Kwid Zen tinha sido reajustado para R$ 54.920. Ou seja, nos últimos seis meses ele sofreu aumento de R$ 5 mil, ou 9%.
Ao menos, agora a opção mais barata oferece de série diferenciais importantes de segurança e conforto que colocam o Kwid em vantagem de custo/benefício sobre o seu principal concorrente, o Fiat Mobi.
O pacote de série inclui ar-condicionado, direção elétrica, controle eletrônico de estabilidade (ESC), assistente de partida em rampa (HSA), monitor de pressão dos pneus, quatro airbags (dois frontais e dois laterais), quadro de instrumentos de LED, sistema de som com rádio, luzes de circulação diurna (DLR) de LED e até sistema Start-Stop, que desliga o motor nas paradas do trânsito e garante ao subcompacto com motor flex 1.0 três-cilindros de 71/68 cv o título de carro a combustão mais econômico do país, ao fazer 15,3 km/l com gasolina e 10,8 km/l com etanol na cidade; ou 15,7 km/l e 11 km/l na estrada.
A estratégia declarada da Renault foi manter o Kwid Zen na entrada (agora bem mais alta) do mercado, com preço pouco abaixo do Mobi, e empurrar para andar superior as versões Intense (R$ 64.190) e Outsider (R$ 67.690), ambas incorporando a central multimídia com tela de 8 polegadas e nível de equipamentos superior a concorrentes como o Volkswagen Gol, que hoje parte de R$ 69,8 mil.
Na comparação de preço e nível de equipamentos, pode-se até argumentar que o Kwid melhorou bastante seu custo/benefício, ele continua sendo inegavelmente a mais barata opção de zero-quilômetro do mercado, mas essa “porta de entrada” agora está localizada alguns andares acima, reduzindo o número de consumidores que têm “escada” longa o suficiente para alcançar essa via para o carro novo – em um país onde atualmente apenas cerca de um quarto da população compra veículos, e ainda assim muito mais usados do que zero.
Vem aí a versão elétrica do “caro” popular
A Renault reconfirmou que ainda este ano começa a ser vendida no Brasil a versão elétrica do Kwid, a E-Tech, 100% alimentada por baterias. Será importado da romena Dacia na Europa, onde o subcompacto se chama Spring e é o elétrico mais barato do mercado. Na França, por exemplo, ele é vendido a partir de € 17.390, que torna-se bastante acessível com o bônus ecológico do governo de € 4.695, que reduz a entrada a € 2,5 mil em um leasing de 48 mensalidades de € 89,98.
Para o Brasil, o Dacia Spring será vestido de Renault Kwid e terá um motor elétrico diferente, especialmente desenvolvido para o mercado brasileiro pela engenharia do grupo na Europa em colaboração com a equipe de São José dos Pinhais (PR). O objetivo, claro, é tentar reduzir o valor de venda o máximo possível.
Luca De Meo, CEO do grupo Renault, em visita à operação brasileira em novembro passado disse ser “provável” que aqui também o Kwid E-Tech seja o elétrico mais barato do mercado. Mas, mesmo aproveitando a isenção de imposto de importação para modelos elétricos, não se espera nada menor do que o dobro do modelo equivalente a combustão – algo acima de R$ 170 mil. Assim, com acabamento rústico e valor luxuoso, será mais um “caro” popular.
OBSERVAÇÕES
• Renault-Nissan-Mitsubishi: € 20 bi para eletrificar
A Aliança Renault-Nissan-Mitsubishi deve apresentar em breve um novo plano de investimentos de € 20 bilhões (US$ 23 bilhões) para o desenvolvimento de carros elétricos construídos sobre cinco plataformas compartilhadas, com previsão de lançar até 2030 mais de 30 modelos de diversos tamanhos e valores. Revelado à agência Reuters por fontes ligadas ao grupo, o projeto denominado “Alliance to 2030” prevê o aprofundamento da cooperação entre os três fabricantes para acelerar a estratégia de eletrificação, incluindo aportes em fábricas de baterias e componentes de uso comum, com o objetivo de reduzir custos e lançar veículos elétricos com preços equivalentes a de carros a gasolina.
• Stellantis, ano 1
Foi bem agitado – e de bons resultados – o primeiro ano de operação do Grupo Stellantis desde a consolidação da fusão entre FCA e PSA em 19 de janeiro de 2021, que colocou sob uma mesma constelação corporativa 14 marcas, 400 mil empregados no mundo todo, presença em 130 mercados e fábricas em 30 países. Foram 10 lançamentos das diversas marcas, incluindo no Brasil o Jeep Commander e o Fiat Pulse – além da apresentação do novo Citroën C3. Os números ainda estão sendo consolidados, mas o primeiro balanço anual deve somar vendas acima de 6,5 milhões de veículos, faturamento próximo de € 135 bilhões, com boa margem operacional na casa dos 11%. O plano estratégico só será divulgado em março, mas há caminhos bem traçados. Já foram separados € 30 bilhões para investir em eletrificação e digitalização/softwares até 2025. Estão disponíveis 33 modelos híbridos e elétricos, mais oito 100% elétricos chegam nos próximos 18 meses. Com o objetivo de transformar a corporação em “empresa de tecnologia de mobilidade sustentável” – o “santo graal” do momento no setor – foram firmadas parcerias com Waymo, BMW, Foxconn e Amazon para desenvolver tecnologias operacionais digitais que vão comandar os veículos do grupo, incluindo sistemas de direção assistida/autônoma, inteligência artificial e conectividade. O segund ano promete.
• Para a Renault, mercado cresce 5% a 6%
A Renault projeta que o mercado brasileiro de veículos leves deve crescer pouco este ano, de 5% a 6%, o equivalente entre 2,1 milhões e 2,2 milhões de carros e utilitários. A previsão é um pouco mais pessimista do que a apresentada pela Anfavea, a associação dos fabricantes, que estima avanço de 9,5%. Ricardo Gondo, presidente da empresa no Brasil, pondera que é uma projeção difícil, tendo em vista a instabilidade provocada por falta de peças, inflação, juros em alta, câmbio caro e volátil, além das eleições que sempre trazem ruídos adicionais à economia.
• Motos: produção de 1,29 milhão
As fabricantes instaladas no Polo Industrial de Manaus esperam produzir 1,29 milhão de motocicletas em 2022, crescimento de 7,9% sobre 2021, que já foi o melhor desempenho do setor desde 2015 – e só não foi melhor devido às restrições produtivas causadas pela pandemia e falta de componentes. A estimativa foi apresentada semana passada pela Abraciclo, que também projeta mercado interno de 1,23 milhão de motos, 6,4% acima do resultado do ano passado – expectativa praticamente igual à dos concessionários reunidos na Fenabrave, que prevê alta de 6,2%. Para as exportações a perspectiva é de tímida variação positiva de 1%, para 54 mil unidades. Pelo lado da oferta, a Abraciclo avalia que a pandemia de coronavírus com a variante ômicron pode afetar empregados, causar interrupções na produção. E no lado da demanda juros altos, crédito mais restrito, combustível caro e redução de consumo (e de motofretes) são fatores que podem prejudicar as vendas.
• Jeep Compass: 300 mil no Brasil
Produzido no Polo Jeep de Goiana (PE) desde 2016, o SUV médio-compacto Compass atingiu este mês a marca de 300 mil unidades vendidas no Brasil. Com versões que variam de R$ 164,3 mil a R$ 246 mil, o modelo é um sucesso de vendas, com quase 71 mil emplacamentos só em 2021, quando foi o sexto veículo mais vendido do país e o segundo SUV mais comprado – perdendo só para o irmão menor Renegade, fabricado na mesma planta pernambucana.
• Unidas aposta R$ 370 milhões em carros elétricos
A Unidas vai mais que dobrar sua aposta no emergente – ainda que incipiente – mercado brasileiro de carros eletrificados. Desde janeiro de 2020 locadora já incorporou 400 deles à sua frota de aluguel e locação corporativa para empresas, incluindo Renault Kangoo ZE, VW Golf GTE e BMW i3. Esta semana a Unidas anunciou que vai investir cerca de R$ 370 milhões para comprar mais 2 mil unidades em 2022, sendo 1,6 mil modelos 100% elétricos. O volume é considerável, tendo em vista que em 2021 foram vendidos 2,8 mil elétricos no Brasil. Os principais clientes das locações eletrificadas são frotistas dedicados a entregas urbanas com utilitários elétricos, interessados em ganhar a imagem de empresa amiga do meio ambiente com emissão zero no transporte de seus produtos, algo que fica bonito no balanço ESG, rende algum marketing ecológico e reduz significativamente gastos com combustível e manutenção. A Unidas afirma que a iniciativa está ligada ao seu “pilar de sustentabilidade”, que certamente fica ainda mais sustentável quando a operação é lucrativa.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
Foto: Divulgação/Renault
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