O primeiro bimestre de 2022 foi péssimo para o mercado de veículos leves, com o pior janeiro dos últimos 14 anos e o pior fevereiro em 16 anos. Na soma de dois meses foram emplacados 237,2 mil automóveis e utilitários, em queda expressiva de 26% em comparação com o mesmo período de 2021 e o menor volume desde 2005, conforme dados de desempenho da indústria divulgados esta semana pela Anfavea, a associação dos fabricantes.
Daqui para frente a entidade espera por resultados melhores, embalados pela redução de 18,5% do IPI dos veículos adotada pelo governo no fim de fevereiro.
A média de vendas inferior a 120 mil veículos/mês deste início de ano está abaixo do que já era projetado pela Anfavea, que estimava desempenho parecido com o do último trimestre de 2021, em torno de 150 mil unidades por mês. Este seria o volume que a indústria daria conta de atender, ainda limitada por reduções da produção causadas pela falta de componentes, especialmente semicondutores de sistemas eletrônicos.
Pois foi isso que a indústria produziu em fevereiro, com 152,6 mil automóveis e comerciais leves fabricados, em baixa de quase 17% sobre o mesmo mês do ano passado, mas 13% acima de janeiro – quando as fábricas normalmente produzem menos com a concessão de férias coletivas nessa época. Portanto, desta vez a produção abaixo da demanda não explica toda a retração do mercado.
Juro alto retrai o consumidor
O ventos contrários da economia estão batendo forte na renda das pessoas, corroída por inflação, produtos cada vez mais caros e pela consequente elevação dos juros, que encarece os financiamentos e deprime o mercado de veículos. Normalmente, as vendas a prazo representam mais da metade dos negócios, mas em fevereiro a porção de compras à vista subiu para 63%.
“Isso explica mostra que o consumidor tenta fugir dos juros altos do financiamento, mas isso logicamente é para quem pode fazer, tem recursos, uma parcela menor da população. A maioria que não tem dinheiro para pagar à vista não consegue financiar, nem comprar”, explica Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea.
O dirigente reconhece que as vendas estão abaixo do esperado, não só por causa da falta de produtos, mas também pela alta pronunciada dos juros. A taxa básica (Selic) estava fixada em 2% ao ano em janeiro de 2021, foi puxada pelo Banco Central a 10,75% um ano depois, para tentar conter a inflação na casa dos 10% no ano passado.
Para piorar o cenário, a guerra deflagrada pela Rússia na Ucrânia tem alto potencial de provocar uma escalada dos preços internacionais de insumos industriais e agrícolas como petróleo, aço, alumínio, trigo e milho, o que coloca mais pressão na inflação em todo o mundo. Nesse quadro, já há projeções de que o BC pode elevar o juro básico para a casa de 13% a 14% no fim de 2022, o que reforçará a recessão econômica.
“Se o BC não calibrar o juro, o remédio pode virar veneno e derrubar a economia. Entre inflação de 5% ou 7% este ano, é preferível ficar com 7% se isso evitar a recessão; até porque o juro não faz tanto efeito sobre a inflação que temos aqui agora, não há excesso de demanda e a alta dos preços está sendo causada por fatores internacionais, isso não dá para controlar com a Selic”, argumenta Moraes.
IPI tem impacto limitado
A redução de 18,5% do IPI dos veículos é um alento para o mercado em retração, mas o impacto real da medida é limitado. Com imposto menor, o peso dos tributos (IPI+ICMS+PIS/Cofins) no valor de automóveis e comerciais leves cai apenas dois pontos porcentuais, de 37% a 44% para 35% a 42%, dependendo do modelo, o que em tese reduziria os preços de 1,4% a 4,1%.
É pouco diante de carros que ficam cada vez mais caros a cada lançamento. Além disso, nem todos os fabricantes vão repassar integralmente ao consumidor o corte do tributo, alguns só vão segurar um pouco mais o reajuste mensal da tabela.
Mesmo sem muito impacto financeiro, a redução de impostos sobre veículos também tem efeito psicológico, como já aconteceu na última década, quando o IPI foi reduzido temporariamente em diversas ocasiões para reaquecer o mercado. Desta vez, contudo, o clima e a renda são outros, com alto desemprego e baixa confiança do consumidor.
“Nos primeiros dias úteis de março temos alguns indicativos que as vendas estão melhorando, mas ainda é muito cedo para saber se esse movimento vai se sustentar e qual será o impacto real da redução do IPI”, afirma o presidente da Anfavea. “Ainda esperamos que a queda das vendas no primeiro bimestre poderá ser recuperada nos próximos meses. Por isso vamos manter nossa projeção de 2,3 milhões de veículos este ano”, completa.
Negociação por mais reduções
Moraes conta que agora os esforços da entidade vão se concentrar em negociar a redução de dois outros tributos. O primeiro é o ICMS do estado de São Paulo aplicado sobre carros zero-quilômetro, que há dois anos subiu de 12% para 14,5% e está previsto para voltar ao nível anterior em dezembro próximo. “Estamos negociando para que caia antes disso”, afirma o dirigente.
Outra alíquota em negociação com o governo federal é a do imposto sobre operações financeiras, o IOF. “É um tributo que não deve ser usado para fins arrecadatórios, mas para regular o mercado, como é o caso agora, para reduzir o custo dos financiamentos, muito importantes para o nosso negócio”, propõe Moraes.
Segundo o presidente da Anfavea, após seis meses de negociações entre representantes da indústria de transformação e o governo, a redução do IPI de forma definitiva – e não temporária por alguns meses como aconteceu em anos anteriores – é o primeiro passo para acabar de vez com o imposto sobre produtos industrializados, na futura reforma tributária, da qual muito se fala e pouco se vê. O tributo poderia ser substituído pelo IVA de aproximadamente 20%, imposto sobre valor agregado, mais simples de ser aplicado e recolhido.
“O IPI é um tributo sem sentido, aplicado somente sobre produtos industrializados, que aumenta muito a complexidade tributária. A redução agora é só o primeiro passo na direção correta de acabar com essa tributação no futuro, quando a reforma tributária puder ser realizada, o que é difícil de acontecer em ano eleitoral como este”, diz Moraes. Ele conta que a indústria queria redução maior, de 50%, mas o governo só concedeu 18,5% para veículos e 25% para os demais produtos.
OBSERVAÇÕES
• Paralisada, Volkswagen perde mais, Hyundai sobe
A falta de semicondutores continua em 2022 distorcendo o ranking das marcas de veículos mais vendidas do país. Neste início de ano a Volkswagen é a fabricante mais afetada pelos problemas de fornecimento de componentes, com paralisações e reduções de ritmo na fábrica de Taubaté (SP), onde são feitos Gol e Voyage, que já provocaram a perda de quase 21 mil carros, que deixaram de ser produzidos no primeiro bimestre, segundo monitoramento da Auto Forecast Solutions (AFS).
O mesmo levantamento mostra que a montadora também perdeu a produção de cerca de 4 mil T-Cross em São José dos Pinhais (PR).
Com isso, as vendas da Volkswagen foram reduzidas a 24,6 mil veículos nos primeiros dois meses de 2022, fazendo a marca cair da segunda para a quarta posição do ranking, anotando sua mais baixa participação histórica de mercado, apenas 10,4% dos emplacamentos de janeiro e fevereiro. O resultado em fevereiro foi ainda pior: quinto lugar e 9,6% de participação.
A VW foi superada no bimestre pela Hyundai, que subiu ao terceiro lugar com 25,9 mil emplacamentos e participação de quase 11%, e pela GM/Chevrolet que ficou em segundo com 30,5 mil carros vendidos, quase 13% do mercado. Sem nenhuma paralisação divulgada na fábrica de Betim (MG), a Fiat segue na liderança folgada, com 49,7 mil emplacamentos em dois meses e 21% das vendas totais.
• Mais carros para locadoras
Os fabricantes esperam conseguir entregar mais de 400 mil veículos às locadoras este ano, que estão atrasadas para renovar suas frotas. Este é o volume calculado para atender pedidos que ficaram represados do ano passado, quando a indústria não foi capaz de atender todas as encomendas devido à falta de componentes para produzir. Segundo divulgou a Anfavea, em fevereiro foram vendidos 25 mil carros a empresas de locação, mas havia demanda para 40 mil.
• Renault confirma investimento, motor 1.0 turbo e novo SUV
Sem falar de valores ainda, a Renault confirmou esta semana um novo ciclo de investimentos para a operação brasileira, que vai suceder o atual programa de R$ 1,1 bilhão anunciado há um ano e que termina no fim deste semestre. O novo pacote inclui a nacionalização de motor turbo 1.0 e da plataforma compacta CMF-B, que na Europa é base de modelos como Clio, Arkana e Captur, além das novas gerações dos Dacia Sandero e Logan, aqui vendidos como Renault.
A fabricante informa que sobre a nova plataforma vai produzir um novo SUV no Complexo Ayrton Senna, em São José dos Pinhais (PR). As apostas recaem sobre a nova geração do Stepway, já em testes no país, que deve ganhar identidade própria para se distanciar do Sandero – assim como a Fiat fez com o Pulse.
Mais adiante, a partir de 2024, as especulações indicam a produção do Dacia Bigster, SUV de sete lugares também fabricado sobre a CMF-B, apresentado ano passado ainda como protótipo da divisão romena da Renault.
Após os lançamentos no último ano dos Captur e Duster 1.3 turbo, Kwid 2023, nova Master, o renovado elétrico Zoe e da confirmação da chegada do Kwid elétrico, a Renault afirma que o atual plano de investimentos ainda tem mais um modelo a ser lançado neste semestre.
• Stellantis quer mais na América do Sul
Após entregar o maior lucro operacional de sua história na América do Sul (€ 882 milhões), a Stellantis confirmou uma nova e ambiciosa ofensiva de lançamentos na região nos três próximos anos: serão 16 novos modelos produzidos no Brasil e na Argentina, além de 28 reestilizações e sete veículos híbridos e elétricos, alguns deles importados.
Os primeiros dessa nova safra chegam nos próximos meses: são o novo Citroën C3, o segundo SUV Fiat e a picape Ram 3500. Estão em curso estudos para a produção local de modelos Ram e veículos híbridos. O plano de longo prazo da Stellantis prevê ainda o lançamento de três novas picapes na região, mas não só Ram ou Fiat, está na lista também a Peugeot Landtrek, que deve ser montada na Nordex do Uruguai juntamente com os utilitários Expert e Jumpy.
A Stellantis pretende atuar na América do Sul com oito de suas 14 marcas. Sete delas, Fiat, Jeep, Peugeot, Citroën, Ram, Opel e DS já estão na região, mas só as cinco primeiras citadas atuam no Brasil e quatro têm modelos produzidos no Brasil e na Argentina. Segundo Antonio Filosa, presidente do grupo nos mercados sul-americanos, a oitava marca será conhecida ainda neste semestre, “mas não é a Alfa-Romeo”, garantiu.
• FX4, a nona versão da Ranger
A Ford enxergou espaço para colocar à venda este mês a Ranger FX4, a nona versão da picape produzida na Argentina, renovada pela última vez em 2019 e com nova geração a caminho, prevista para chegar ao mercado em 2023.
Com quatro versões voltadas ao trabalho ou uso misto e outras quatro mais caras para uso pessoal, como um automóvel, a parte de cima da gama é a que mais cresceu nos últimos anos, 60% só em 2021 sobre 2020, e representa 28% das vendas da Ranger, 13 pontos porcentuais acima do ano anterior. A nona versão pode ampliar essa margem do andar de cima da gama.
Por R$ 288.990, a FX4 tem o mesmo preço da XLT e só fica abaixo da topo de linha Limited, que sai por R$ 313.590. A diferença entre elas é que a FX4 tem forte capacidade offroad, igual à versão Storm (R$ 252.440), mas com acabamento mais sofisticado e maior número de equipamentos de série.
Assim como as outras versões no alto da gama, a Ranger FX4 usa o motor turbodiesel 3.2 de 200 cv e 470 Nm de torque máxim, com transmissão automática de seis marchas. A capacidade offroad é garantida pela tração 4×4 e diferencial traseiro blocante. Para aumentar o apelo fora-de-estrada, é possível equipar FX4 com snorkel e, por R$ 2 mil extras, trocar as rodas 18” por 17” calçadas com pneus especiais Pirelli Scorpion AT+.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
Foto: Divulgação
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