Não dá mais para esperar, o poder público precisa tomar medidas urgentes para reduzir as mortes e doenças causadas pela poluição do ar nas grandes cidades brasileiras, provocadas essencialmente pelas emissões de veículos, principalmente os mais velhos, em situação que se agrava com o envelhecimento da frota.
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) consolidados em 2021, a poluição atmosférica mata 7 milhões de pessoas por ano no mundo, 300 mil nas Américas e 70 mil no Brasil – antes da covid-19, essa era a maior causa global de mortes.
Somente na região metropolitana de São Paulo, estudo de 2018 da Escola Paulista de Medicina indica que em torno de 18 pessoas morrem por dia, ou 6,5 mil por ano, devido a patologias causadas pela poluição, como câncer, doenças cardíacas e respiratórias. O mesmo motivo causa 11 internações por dia e gastos de R$ 2,7 bilhões por ano com tratamentos de saúde.
Frota envelhecida
De acordo com estudo concluído em março passado pelo Sindipeças, a frota circulante de veículos no Brasil vem envelhecendo ano a ano na última década, passando da média de oito anos e cinco meses em 2013 para dez anos e três meses em 2021, ganhando quase dois anos a mais no período.
Os níveis de poluição veicular no país estão diretamente ligados à frota velha. Dos cerca de 45 milhões de veículos leves em circulação, mais da metade, 56%, ou 25,5 milhões, são modelos fabricados até 2013, portanto estão enquadrados nas fases mais antigas, L1 a L5, do Proconve, o programa de controle de emissões veiculares adotado no Brasil a partir de 1988.
Essas fases têm limites de emissões bem mais brandos em relação à L6, de 2014 a 2021, e à atual L7 iniciada em janeiro deste ano. Além disso, os sistemas de redução de poluentes instalados nesses carros, como catalisadores, estão vencidos, em grande maioria fora da garantia de 80 mil quilômetros exigida pela legislação, o equivalente a cinco a oito anos de uso pelo padrão brasileiro. Nas fases L7 e L8 (começa em 2025) essa garantia foi dobrada para 160 mil km.
No caso de veículos pesados, caminhões e ônibus, a situação é ainda pior. Da frota circulante de quase 2,5 milhões, 1,5 milhão, ou 61%, estão enquadrados em fases anteriores ao Proconve P7, que entrou em vigor em 2012 com exigência de garantia do funcionamento dos sistemas de tratamento de gases de até 500 mil km – a próxima etapa P8, que começa em 2023, prevê 700 mil km. As etapas anteriores P1 a P6, de 1989 a 2011, previam garantia de até 160 mil km, distância que no Brasil é percorrida por um caminhão em menos de dois anos, na média.
Poluição resiliente
Estudo divulgado há poucos dias pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA) com medições da poluição atmosférica na cidade de São Paulo, onde circula a maior frota do país, comprova o quanto são resilientes as emissões dos principais poluentes, incluindo material particulado (MP 2,5 e 10), ozônio (O3) e dióxido de nitrogênio (NO2), todos diretamente ligados às emissões de carros, caminhões, ônibus e motos.
Ao longo dos últimos 22 anos, todos os três poluentes altamente nocivos à saúde estiveram em níveis superiores aos recomendados pela OMS. Em alguns pontos da cidade, como a Marginal Tietê, as medições chegaram a acusar emissões mais de quatro vezes acima dos limites preconizados.
“Isso significa que nas duas últimas décadas os moradores de São Paulo continuaram respirando ar inadequado. Quanto maior a concentração de poluentes, mais a saúde é afetada”, destacou em nota David Tsai, gerente de projetos no IEMA e coordenador do estudo sobre a poluição do ar no município.
O IEMA indica que as emissões de poluentes em São Paulo vêm caindo desde 2000, fato atribuído à criação e adoção dos limites do Proconve, mas ainda assim os níveis seguem ultrapassando em muito as recomendações da OMS.
Por exemplo, a queda de NO2 medida nos últimos 22 anos na estação de monitoramento do Ibirapuera foi de 41 microgramas por metro cúbico (µg/m3), para 24 µg/m3 em 2021, mas o número ainda é mais que o dobro do mínimo recomendado pela OMS, de 10 µg/m3.
Já a estação da Marginal Tietê, que sofre o efeito imediato das emissões dos poluentes dos milhões de veículos que circulam por ali todos os anos, registra 49 µg/m3 de NO2, ou quase cinco vezes acima do recomendado.
O estudo também avaliou a concentração do material particulado de 2,5 mícrons (MP 2,5, mais fino) e MP 10. A recomendação da OMS é de 15 microgramas por metro cúbico para o MP 10. Porém, a estação mais limpa da cidade em 2021, em Santo Amaro, registrou 21 µg/m3 do poluente, enquanto no Parque D. Pedro II, Perus e Marginal Tietê as medições anotaram o dobro, 30 µg/m3.
Com relação ao MP 2,5 a situação é ainda pior. A recomendação da OMS é de 5 microgramas por metro cúbico e a estação Marginal Tietê registrou 19, quase quatro vezes acima do preconizado. E o melhor valor colhido, no Pico do Jaraguá, foi de 11, mais que o dobro do indicado, mostrando que a poluição está espalhada pela cidade toda, até mesmo em local de maior altitude, longe das fontes emissoras e dentro de um parque.
É preciso agir, mas é improvável
A renovação da frota nacional, por meio da troca de veículos velhos por novos e menos poluentes, é o caminho mais apropriado para reduzir as emissões, mas nada indica que isso irá acontecer pelas forças de mercado. Isso porque os carros estão cada vez mais caros e a população cada vez mais pobre, então a tendência é ficar mais tempo com o veículo.
Portanto, se nada for feito a tendência de envelhecimento da frota – e aumento da poluição – deve continuar por muitos anos à frente, assim como persiste há mais de duas décadas.
Também nada indica, até este momento, que o poder público vá promover políticas públicas para incentivar uma ampla renovação de frota ou retirada de circulação de veículos velhos, via inspeção veicular e taxação de carros e caminhões com mais anos de uso.
O programa Renovar, criado recentemente pelo governo federal após décadas de atraso, inicialmente servirá para renovar caminhões com mais de 30 anos, de forma voluntária, mas ainda carece de regulamentação e até agora não parece ter grandes ambições. Ou seja, se funcionar, terá baixo impacto.
Na época da criação do Proconve, em 1986, ficou estabelecido que caberia à indústria desenvolver e adotar tecnologias para reduzir emissões de poluentes dos veículos, o que serviria também para estimular o desenvolvimento tecnológico nacional e a melhoria das características dos combustíveis. Já o governo seria responsável por criar programas de inspeção veicular, promover a conscientização popular e estabelecer condições de avaliação dos resultados alcançados.
Ainda que de forma mais lenta que a desejável, os fabricantes vêm fazendo sua parte, hoje produzem veículos indiscutivelmente mais limpos. Já o poder público ficou devendo. Ao que tudo indica, muita gente ainda vai morrer por problemas causados pela inalação de poluentes antes que algum governo faça algo a respeito.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
Foto: Gerd Altmann/Pixabay
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