Visto sem torcidas a favor ou contra, o resultado do mercado nacional de veículos na primeira metade de 2022 pode ser considerado um desastre. Com 853 mil emplacamentos registrados de janeiro a junho, as vendas de automóveis e comerciais leves caíram 15,4% na comparação com o mesmo período de 2021.
Diante da derrocada e sem ter mais como sustentar as projeções de crescimento feitas em janeiro, as duas entidades que representam os distribuidores e fabricantes, Fenabrave e Anfavea, tiveram de revisar para baixo suas expectativas.
A Fenabrave, seis meses atrás, esperava crescimento de 4,4% no mercado de veículos leves este ano, enquanto a Anfavea apostava em quase o dobro disso, 8,4%. Agora ambas reajustaram as previsões para algo próximo de um honroso zero a zero, estimando vendas em torno de 2 milhões de unidades, quase igual ao desempenho dos dois últimos anos, muito afetado pela pandemia.
Ainda assim, o empate – ou estagnação – parece ser um resultado otimista demais. Para chegar aos 2 milhões de emplacamentos é preciso vender mais de 1,1 milhão de automóveis e utilitários nos próximos seis meses, o que significa crescimento de 29% sobre o total do primeiro semestre. Historicamente a segunda metade do ano é melhor do que a primeira, mas essa expansão fica na casa dos 10% a 15%.
Para alcançar as novas projeções, seria necessário emplacar quase 200 mil veículos por mês até o fim de 2022, algo que só aconteceu uma vez em 2021 inteiro, em dezembro passado. A média diária de vendas precisaria subir a mais de 9,5 mil emplacamentos por dia útil. O nível atual está estacionado mil unidades abaixo disso e, mesmo assim, só chegou as patamar de 8,5 mil em maio e junho, os dois melhores meses do ano até agora.
Indicadores negativos
Quando se olha adiante para os próximos meses, inexistem indicadores para lastrear tal resultado. Continuam faltando chips eletrônicos em medida suficiente para atender a demanda, que por algum milagre segue acima da oferta, mesmo com a maioria dos carros novos sendo vendidos por mais de R$ 120 mil, ponto de referência onde se concentram mais de 70% das vendas do mercado brasileiro atualmente.
A falta de semicondutores subiu o nível de preços e aprofundou o problema. Com abastecimento de chips abaixo do necessário, a indústria direcionou os componentes para carros mais caros e rentáveis, o que tornou os produtos inacessíveis para a grande massa de consumidores. Não por acaso o segmento de hatches compactos, os mais baratos, registrou queda de vendas acima de 30% na comparação com o primeiro semestre de 2021, porcentual que é o dobro da retração média do mercado.
Acompanhamento da própria Anfavea contabiliza que, no primeiro semestre, a falta de semicondutores já provocou a perda de produção de 170 mil veículos em 357 dias de inatividade em vinte fábricas, na média de dezoito dias parados por fábrica – o volume perdido segue no mesmo ritmo de 2021 quando mais de 350 mil veículos deixaram de ser produzidos no Brasil por falta de componentes. E o segundo semestre começou em julho com cinco plantas paralisadas, duas da Volkswagen, uma da GM, Nissan e Mercedes-Benz.
Boa parte dos executivos da indústria avalia que a situação vai melhorar no segundo semestre, mas não é o que analistas projetam. “O otimismo abunda dentro do cercado de dirigentes da indústria, mas o final deste túnel em particular pode estar mais longe do que muitos esperam”, aponta Sam Fiorani no mais recente boletim da Auto Forecast Solutions que monitora semanalmente a situação em mais de quatrocentas fábricas no mundo todo.
A Anfavea espera que as férias de Verão no Hemisfério Norte reduzam a demanda por chips lá, fazendo sobrar mais componentes para as montadoras aqui. A entidade também calcula que o pior da crise passou, o colapso de fornecimento aconteceu no segundo semestre do ano passado e no primeiro trimestre deste ano. Agora o abastecimento estaria voltando ao normal e por isso seria factível alcançar a projeção de 2 milhões de veículos.
Se no momento a falta de componentes para produzir é o principal limitador das vendas de veículos no Brasil, o que vem depois pode ser pior, que é a contração da demanda. A combinação nefasta de elevação às alturas dos preços dos carros, disparada da inflação, queda da renda, alta nos juros e consequente encarecimento do crédito está tirando milhões de consumidores deste mercado.
Nesse cenário os bancos estão mais restritivos para conceder crédito e os consumidores não têm recursos nem segurança para contrair empréstimos. Por isso as vendas de veículos por financiamentos já baixaram para 40% do total, bem abaixo dos 60% a 70% que sempre representaram.
Como não conseguem atender a todos os pedidos, a retração do consumo ainda não é uma preocupação imediata dos fabricantes. Mas deverá ser muito em breve. Hoje faltam produtos mas também já faltam clientes, especialmente os de menor renda, que estão migrando para comprar veículos mais baratos, como motos e carros usados mais velhos. Ou seja, o mercado parou e começou a encolher.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
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