Marca abandona imagem e apela a projeto depenado para lançar hatch B mais barato
O recente lançamento do Citroën C3 traz duas constatações importantes sobre a evolução da indústria automotiva nacional e o mercado brasileiro de veículos:
1) O chamado carro popular evoluiu, tem mais equipamentos de segurança e de conforto, essencialmente por causa da legislação e de exigências mais elevadas do consumidor – o que também leva à adoção do design estilo SUV em boa parte dos lançamentos.
2) Apesar de toda a evolução, modelos populares no Brasil continuam pobres em acabamento e muito caros em relação ao que oferecem e à renda média da população. Essa distorção cria os piores carros mais caros do mundo.
Para lançar o hatch B compacto mais barato do mercado brasileiro, em cinco versões a partir de R$ 69 mil e chegando a R$ 94 mil, a Citroën claramente se inspirou na versão europeia do C3 mas lançou mão de projeto depenado na Índia e no Brasil, descendo alguns degraus em acabamento e equipamentos.
Tudo para oferecer um carro adaptado para países emergentes – eufemismo para mercados subdesenvolvidos com consumidores subdesenvolvidos, sem renda para pagar por produtos de alto valor agregado, como carros.
Com essa estratégia para ganhar clientes a Citroën manteve sua identidade visual mas abriu mão de imagem construída ao longo de mais de duas décadas no mercado brasileiro, que a identificava como fabricante de carros de projetos globais e mais bem caprichados no acabamento, com qualidade percebida pelo olhar.
Evolução limitada
Não chega a ser uma volta ao passado recente, quando quase 100% dos veículos produzidos no Brasil tinham enormes abismos de qualidade em relação a modelos de perfil similar feitos nos países sedes das montadoras multinacionais instaladas aqui. Mas é fato que os projetos nacionais continuam sendo mais pobres.
No caso específico do novo C3 emergente, basta uma visita ao site francês da Citroën para encontrar muitas semelhanças e muitas diferenças com o C3 europeu, o segundo carro a combustão mais barato da marca, partindo de € 16 mil e chegando a € 25,1 mil.
Muitos pontos do design são bem parecidos, mas nota-se interior mais bem acabado e equipamentos de série em maior quantidade do que no modelo hindu-brasileiro.
Interessante lembrar que a marca-irmã Peugeot fez algo parecido no Brasil, em 2008, quando lançou aqui o hatch 207 sobre a plataforma do 206, inferior e diferente em relação ao carro europeu. Ao menos naquela época a estratégia não funcionou bem e as vendas da marca entraram em declínio.
É fato que hoje carros populares no Brasil são mais bem projetados e equipados, as versões mais básicas têm equipamentos que há dez anos eram opcionais caros, como ar-condicionado, direção assistida elétrica, acionamento elétrico de vidros, travas e retrovisores, bem como airbags frontais e controle eletrônico de estabilidade.
O novo C3 traz tudo isso, por força da evolução da legislação no caso dos sistemas de segurança e no caso de sistemas de conforto por força da evolução das exigências do consumidor, que não aceita mais pagar tão caro por carros mal-ajambrados e depenados.
Câmbio automático, que não era nem uma opção nos carros mais baratos do mercado brasileiro, já está presente na versão mais cara do novo C3. O item mais tecnológico do carro, que disfarça o acabamento rústico do painel, é a ampla tela horizontal do sistema multimídia de 10 polegadas, mas está presente somente a partir da segunda versão, que custa R$ 75 mil, R$ 6 mil acima da opção de entrada.
Apesar de toda a evolução dos carros populares no mercado brasileiro, não existe almoço de graça e o novo C3 compensa os têm com muitos não têm, a começar pelo acabamento interior rústico, repleto de plásticos duros até para o olhar. O quadro de instrumentos é digital, mas monocromático – lembra calculadoras – e sequer tem conta-giros, em nenhuma versão.
Para ser mais barato que os rivais a opção de entrada do C3 não tem o sistema multimídia com tela tátil de 10 polegadas, nem chave com comando remoto ou um trivial limpador e desembaçador do vidro traseiro. E nenhuma opção do carro tem airbags laterais, como muitos modelos da mesma categoria já oferecem. Prosaicos tapetes de borracha e protetor de cárter são vendidos como acessórios opcionais até para a versão mais cara topo de linha.
É uma equação difícil de fechar: ao mesmo tempo que legislação e consumidor mais exigente promovem evoluções importantes nos veículos nacionais, a persistente alta carga tributária e a necessidade de lucro dos fabricantes competem contra a evolução, cortando custos e empobrecendo os projetos para manter as margens dos dois maiores sócios do preço dos carros no Brasil: fabricantes e governo.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
Foto: Divulgação
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