Carros muito caros para a esmagadora maioria da população brasileira, com preço médio de venda na casa de R$ 126 mil, acompanhados de crédito restrito com juros que encostam nos 30% ao ano, prenderam o mercado de veículos brasileiro abaixo de seu potencial em 2022 e nada indica cenário melhor para 2023.
Fechados três terços do ano, de janeiro a setembro foram vendidos no País pouco mais de 1,5 milhão de automóveis, comerciais leves, caminhões e ônibus, resultado 4,7% abaixo do mesmo período de 2021. Embora o mercado venha apresentando recuperação constante dificilmente 2022 irá superar o ano anterior.
A Anfavea, associação dos fabricantes, confia que será atingida sua projeção de vender 2,14 milhões de veículos este ano, resultado que representa insignificante crescimento de 1% sobre 2021 – a mesma coisa que quase nada.
Para chegar lá é necessário somar mais 637 mil vendas no último trimestre de 2022, o que significa emplacar a média de 10.111 veículos em cada um dos 63 dias úteis que faltam para terminar o ano em outubro, novembro e dezembro somados. Sabe-se que, até agora, em nenhum mês deste ano foi alcançado este nível de média diária de vendas – a maior foi em setembro, com 9,2 mil emplacamentos/dia.
Semicondutores ainda distorcem
O presidente da Anfavea, Márcio de Lima Leite, argumenta que as vendas ainda estão rodando abaixo da demanda por falta de oferta suficiente, pois as fábricas ainda enfrentam problemas de abastecimento de microchips, produzem menos do que seria necessário para atender todos os pedidos.
Na expectativa do dirigente bastaria entregar todos os carros a quem está esperando para alcançar com certa tranquilidade a projeção de vendas deste ano.
O problema da falta de semicondutores ainda persiste mas está bem melhor do que foi no segundo semestre de 2021 e no primeiro deste ano.
Segundo monitoramento semanal mais recente da consultoria AutoForecast Solutions, no ano passado as fábricas brasileiras deixaram de produzir 377,6 mil veículos por falta de microchips, enquanto em 2022, de janeiro até 14 de outubro, foram perdidas 176,6 mil unidades, indicando que as perdas deste ano devem se situar em cerca de metade do nível do ano passado.
Ou seja, o problema da falta de chips foi reduzido à metade, mas nem por isso o mercado cresce, demonstrando que também está faltando poder aquisitivo no mercado.
Baixo crescimento em 2023
E o que acontece em 2023? Boa parte dos executivos do setor aposta em mercado na faixa de 2,1 milhões a 2,3 milhões de veículos, o que prenuncia mais um ano de estagnação ou baixo crescimento, o que não é nada alentador para uma indústria capaz de produzir o dobro disso.
Em recente entrevista para edição especial de perspectivas da revista AutoData, o presidente da Anfavea reforçou que a escassez de semicondutores vai continuar mantendo a demanda maior do que a oferta de veículos, mas ele projeta que o crescimento mínimo esperado para o ano que vem é de 4%, “ou até muito mais”, disse Lima Leite.
O dirigente lastreia sua expectativa no fato que no primeiro trimestre de 2022 foram vendidos apenas 406 mil veículos no País, número muita abaixo da média de anos recentes. Portanto será fácil crescer sobre aquele resultado deprimido e assim garantir um ano pouco melhor que este.
Lima Leite também diz que as locadoras ainda precisam comprar 600 mil veículos para renovar suas frotas, que estão com idade média elevada, e atender a demanda crescente por locações de carros, incluindo os planos de assinatura cada vez mais ofertados como opção mais viável do que a compra, dependendo do uso.
Quando voltar a produzir em níveis normais, sem tanta falta de chips, provavelmente a partir de 2024 a indústria vai precisar de mercado muito maior do que o atual para ocupar sua capacidade e garantir a viabilidade econômica de sua operação no País.
O mercado brasileiro já teve potencial de quase 4 milhões de veículos/ano, foram vendidos 3,8 milhões em 2012, quando a renda da população era maior e carros e crédito eram mais baratos e disponíveis. Hoje o quadro é bem diferente.
Crédito limita mercado
O Brasil entra em 2023 e deve sair dele com a maior taxa de juro real do mundo, que ainda assim não consegue domar a inflação que drena a renda da população com ocupações mal remuneradas, ao mesmo tempo em que 53% das famílias estão endividadas e a inadimplência nos financiamentos de veículos já supera 5% dos contratos ativos, o nível mais alto em muitos anos.
O crédito caro e restrito a poucos em condições de se endividar leva a uma distorção nunca antes vista no mercado nacional de veículos: em agosto passado, mesmo com os preços dos carros nas alturas, 65% das vendas foram à vista. Historicamente este porcentual sempre foi o inverso, com 60% a 70% dos veículos comprados a prazo, por financiamentos.
O presidente da Anfavea reconhece que não será sustentável viver assim por muito tempo. É inviável para o mercado crescer sem crédito para diluir em parcelas o nível estratosférico dos preços dos carros. Será difícil vencer este círculo vicioso.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
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