Diante da guinada para baixo do mercado e do cenário insustentável para a indústria, que só produz veículos muito caros para consumidores sem renda nem crédito para comprá-los, lideranças e especialistas do setor começaram a falar, aqui e ali, sobre a necessidade de retomar a política nacional do carro popular.
Em tese seria um automóvel zero-quilômetro com preços mais acessíveis, desaparecidos no Brasil na última década em que evoluções tecnológicas obrigatórias, estratégias de marketing, crises econômicas e empobrecimento da população tornaram o produto inacessível a mais de 90% dos viventes nacionais.
Mas cabe a pergunta: Como recriar o carro popular sem retrocessos do produto e de sua indústria? Como reinventar um veículo barato sem amputações tecnológicas ou de conforto? Como evitar a criação de mais uma das muitas jabuticabas já semeadas no Brasil por este setor? Seria mais um fruto que só existe aqui e isola o País dos maiores mercados do mundo e das principais tendências tecnológicas?
Assim como a frutinha em questão o carro 1.0, criado em 1993 para ser popular com tratamento tributário diferenciado, é uma autêntica jabuticaba automotiva brasileira que perdura até hoje com imposto menor, mas com conteúdo e preço muito maiores, que fazem o termo “popular” perder sentido – ainda que estes carros continuem sendo muito caros pelo que oferecem.
História se repete?
Lembrando do que acontecia no Brasil de 30 anos atrás, quando o mercado de menos de 1 milhão de automóveis por ano era insustentável para apenas quatro fabricantes de automóveis que operavam aqui, montadoras e seus fornecedores de autopeças, concessionários, trabalhadores e governo se reuniam à mesa da Câmara Setorial Automotiva, criada para destravar as vendas.
Já naquela época o mercado de veículos era um cercadinho limitado por produtos muito caros – e muito piores do que os atuais –, falta de crédito e baixa renda.
E qual foi a solução? Na época, no primeiro acordo da Câmara, celebrado em 1992, em busca de se ampliar o mercado com preços mais camaradas, cada parte abriu mão de receitas: indústria e concessionários concordaram em reduzir lucros, o governo baixou o principal imposto aplicado sobre o setor, o IPI, que variava de escorchantes 20% por um modelo 1.0 a 42% para os mais potentes acima de 100 cavalos, e desceu para 14% a 36%.
No ano seguinte o segundo acordo da Câmara criou o chamado carro popular, reduzindo o IPI a simbólico 0,1% para modelos com motores de 1 litro – com exceção aberta para a Volkswagen que foi instada por capricho saudosista de um presidente da República a tirar da cova o Fusca com seu ineficiente motor refrigerado a ar.
Só a Fiat tinha pronta a solução com o seu Uno Mille lançado anos antes, o resto saiu correndo atrás de gambiarras tecnológicas, rebaixando a machadadas a capacidade volumétrica de motores já existentes para lançar os seus populares 1.0 com potências que mal alcançavam os 50 cavalos.
Com os populares o mercado se multiplicou por dois e por três nos anos seguintes. Nem mesmo a variações para cima do IPI, que chegou a 10% no início dos anos 2000, fez os modelos 1.0 perderem terreno: em 2001 eles dominaram o pico histórico 70% das vendas.
Mas o ganho de volume de mercado foi construído a base de produtos depenados e de baixa qualidade, em que até um mero protetor de cárter ou tapetes de borracha eram vendidos como opcionais. Os carros populares eram os mais baratos mas podem ser considerados caros demais pelo que ofereciam, podem ser enquadrados na interessante classificação de piores carros mais caros do mundo.
Carros depenados?
Algo na breve história acima lembra o Brasil automotivo de 2023? Certamente não pelos produtos, muito mais evoluídos hoje por força de legislações de controle de emissões e segurança, além da cobrança de consumidores melhor informados. Mas a inanição do mercado força a busca por uma solução que faz, sim, lembrar da Câmera Setorial de 30 anos atrás.
A lembrança histórica do que já foi feito serve para aproveitar os acertos e evitar os mesmos erros do passado recente. Quando se fala em recriar e relançar o carro popular no Brasil é preciso saber, também, quem vai abrir mão do quê e quais serão as consequências no horizonte.
É certo que, desta vez, será bem mais difícil convencer qualquer uma das partes a abrir mão de receitas. As matrizes das fabricantes de veículos não vão tolerar mais um centavo de prejuízo no Brasil, um dos dez maiores mercados do mundo, mas um dos menores dentre os maiores, no qual não faz mais sentido empatar capital enquanto é necessário investir bilhões em novas tecnologias de transição energética.
Já o governo tem pouca ou nenhuma margem para reduzir impostos sobre veículos. O IPI dos carros 1.0 está fixado em 5,27% desde a última redução do tributo, em 2022: é porcentual já bastante comportado e a reforma tributária em construção tende a eliminar este imposto. Os estados também não querem nem ouvir falar em redução de ICMS de 12%.
Se ninguém pode abrir mão de receitas o que sobra, então, é depenar os carros para torná-los mais baratos, criando mais exemplares dos piores veículos mais caros do mundo?
A indústria vai voltar a cobrar pelo protetor de cárter e os tapetes? Que tal tirar a direção elétrica para esculpir o muque ao esterçar o volante? Levantadores de vidros, travas e ajuste do retrovisor vão voltar a ser manuais? Talvez nem tanto mas é muito provável que itens como ar-condicionado e sistema de som multimídia voltem a ser caros opcionais – o que contribui para tornar a compra de um usado melhor equipado bem mais vantajosa.
E como fica a legislação de controle de emissões, eficiência energética e de segurança veicular? As leis também serão depenadas para produzir um carro mais barato? O que pode ser retirado de carros que já têm menos equipamentos do que seus similares na Europa?
O fato é que a indústria continua a produzir carros populares no Brasil, mais evoluídos do que foram no passado, é verdade, mas que não têm mais preços populares, apesar de seguirem com acabamento tosco e pouco conforto na comparação com mercados mais evoluídos.
Especulações dão conta que o novo carro popular seria um modelo 1.0, com motor exclusivamente a etanol, a ser vendido por algo em torno de R$ 50 mil a R$ 60 mil. Seria, portanto, piorar ainda mais o que já não é nenhuma maravilha quando se olha para um Fiat Mobi ou um Renault Kwid, os dois zero-quilômetro mais baratos do mercado.
Será muito difícil fazer renascer um carro popular sem preço popular ou sem um programa de crédito popular, pois não se imagina que o público alvo dessa nova jabuticaba nacional tenha renda para tão pouco. Ou seja, pode estar se criando um programa que não serve a quem deveria.
É preciso dar transparência ao que está sendo negociado para evitar que uma involução seja travestida de evolução com a aprovação de incentivos públicos a veículos que podem até fazer o mercado crescer, mas que também colocam esqueletos em armários, como aconteceu há 30 anos com os modelos 1.0 e o velho Fusca, que apesar de toda a simpatia pelo modelo, não trouxe nenhuma evolução ao País.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
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