Observatório Automotivo

Desconto efêmero deixa lição: carro pode e deve ser mais barato.

Programa do governo para reduzir preços de automóveis dura pouco mas mostra que fabricantes podem reduzir os preços

Esgotados os R$ 800 milhões – R$ 300 milhões a mais do que previa o plano original – que o governo destinou em créditos tributários para patrocinar descontos de R$ 2 mil a R$ 8 mil para automóveis até R$ 120 mil, fica a lição: apesar de efêmero, o programa mostrou que carros zero-quilômetro podem e devem ser mais baratos no País, os consumidores continuam interessados neles quando podem comprá-los.

O programa emergencial costurado às pressas para salvar os fabricantes da forte retração de mercado, provocada por preços excessivamente altos, juros inviáveis, falta de crédito e renda ladeira abaixo, durou menos de um mês na prática mas serviu ao propósito de estancar temporariamente a queda de vendas que já indicava paralisações de fábricas e demissões.

Também mostrou que, para além de qualquer ajuda do governo financiada pelos impostos de todos nós, os fabricantes também podem e devem fazer mais para reduzir seus preços.

Basta verificar que a vasta maioria dos carros vendidos em junho – 52,3% deles, segundo a consultoria Jato Dynamics – recebeu descontos patrocinados pelo governo, mas não só: quase todos também contaram com avantajados abatimentos extras bancados pelos fabricantes. Ou seja, eles podem vender por menos, existe margem de lucro sobrando para tanto.

Descontos a mais

Um levantamento feito pelo Instituto AAV com notas fiscais emitidas de 5 a 21 de junho, nos primeiros quinze dias em que o programa de redução de preços começou a valer, mostra que dos dez veículos que receberam os maiores descontos médios, oito deles tinham abatimento maior do que o valor máximo patrocinado pelo governo – dois, os Caoa Chery Tiggo 7 e Tiggo 5X, sequer estavam enquadrados nas regras para receber o benefício, mas eram vendidos com descontos de R$ 7,5 mil e R$ 5,5 mil, respectivamente.

Outro bom exemplo é o Renault Kwid, carro mais barato do mercado brasileiro e, em tese, com baixa margem de manobra: nas duas semanas do levantamento o Instituto AVV apurou que este foi o veículo vendido com o maior desconto médio, de R$ 10,2 mil, ou R$ 2,2 mil acima do desconto máximo de R$ 8 mil patrocinado pelo governo para este modelo específico.

Não por acaso o Kwid foi o nono carro mais vendido de junho e, segundo fonte da Renault, poderia ter obtido melhor colocação se as vendas com desconto tivessem começado antes, porque consta que só a partir do dia 19 os fabricantes efetivamente começaram a ter estoque para entregar carros com os descontos. Ainda de acordo com a mesma fonte a grande maioria que veio atrás de um Kwid zero era de gente que estava fora do jogo, não conseguia aprovar crédito e tinha migrado ao mercado de usados.

O que a Renault fez com o desconto de R$ 10 mil – R$ 8 mil do governo mais R$ 2 mil da fabricante – foi reduzir o total a ser financiado, possibilitando a aprovação do crédito para pessoas que antes seriam recusadas, e com isto também baixou o valor da parcela. A entrada foi reduzida em cerca de R$ 4 mil e cada mensalidade ficou R$ 300 mais barata do que seria antes de junho.

Outras marcas fizeram movimento parecido. O Peugeot 208, por exemplo, foi vendido por desconto médio de R$ 8,7 mil, o segundo maior apurado pelo Instituto AVV no mesmo período e bem acima do patrocínio máximo de R$ 7 mil para o carro.

Estes exemplos mostram que o efeito do programa poderia ser estendido por mais tempo e para quem mais precisava se não fossem patrocinados descontos com dinheiro público a quem não precisava deles para comprar um zero-quilômetro.

Ao estender o benefício, mesmo que em menor escala, para modelos de até R$ 120 mil, extrapolou-se bastante a faixa dos preços de entrada do mercado brasileiro, que começavam em R$ 70 mil até antes de junho.

Se há poucos recursos para bancar programas deste tipo, melhor teria sido fixar um valor-teto mais baixo, digamos até R$ 80 mil, focado em trazer de volta somente consumidores, pessoas físicas, que tinham sido expulsos do mercado por falta de renda e crédito.

Mas aí funcionou o lobby de fabricantes que investiram em produtos mais caros e rentáveis e se acostumaram, nos últimos anos, a vender bem menos volumes lucrando muito mais.

Como fica

Ao que tudo indica os 93,5 mil veículos leves que foram vendidos com descontos do governo em junho, mais outros cerca de 75 mil que ainda serão emplacados em julho, indicam o tamanho máximo da bolha inflada pelo programa.

É o suficiente, por enquanto, apenas para manter no zero a zero a previsão de vendas na casa de 2 milhões de unidades para este ano, que será o terceiro consecutivo de estagnação – e seria de queda certa se não fosse o programa de descontos.

Seria saudável que os fabricantes mantivessem os descontos que estão bancando até agora, ao menos para mostrar que realmente precisam vender mais e não estão tão confortáveis com o lucro maior por unidade vendida.

* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.


 

 

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Pedro Kutney

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