Extensão de isenções tributárias ao Nordeste e Centro-Oeste esconde dados necessários para aprovar ou cancelar os benefícios
Virou disputa aberta a extensão, até 2032, de isenções tributárias a fabricantes de veículos instalados no Nordeste e Centro-Oeste, aprovada no Senado, na semana passada, na PEC 45, a Proposta de Emenda à Constituição que regula a reforma tributária no País, que agora aguarda nova votação na Câmara dos Deputados sob intensa pressão de montadoras a favor e contra o benefício.
Dos dois os lados falta transparência para justificar a continuação ou o cancelamento dos incentivos do chamado Regime Automotivo do Nordeste e Centro-Oeste, que existe desde 1997 e após duas extensões, em 2010 e 2020, termina em 2025 com o fim de seu principal benefício: a isenção total de IPI hoje usufruída por Stellantis e Baterias Moura, ambas em Pernambuco – que ganharão no ano que vem a companhia da BYD na Bahia –, e desconto de 32% no imposto utilizados por Caoa [Chery e Hyundai] e HPE [Mitsubishi e Suzuki], em Goiás.
Pois são justamente contra estas empresas que as maiores montadoras do País com fábricas em São Paulo – e sem os incentivos tributários do Nordeste – resolveram se unir de forma nunca antes tão escancarada. General Motors, Volkswagen e Toyota assinam juntas uma carta aberta, publicada em 8 de novembro, na forma de publicidade nos principais jornais do País, na qual defendem o fim do regime especial.
Nota-se que o real interesse das três empresas, que há três anos ficam cada vez mais distantes atrás da Stellantis nas posições dois, três e quatro do mercado, é derrubar vantagens competitivas da líder que não conseguem alcançar.
Talvez por isto ninguém tenha reclamado tão explicitamente dos mesmos incentivos que a Ford recebeu na Bahia durante vinte anos, pois a montadora não representava grande ameaça e fechou suas fábricas no Brasil em 2021 – não sem deixar cerca de 5 mil desempregados na cadeia produtiva da região.
Em ato explícito de falta de transparência GM, Volkswagen e Toyota dizem na carta aberta que apoiam o desenvolvimento do País e a reforma tributária, mas para que ela “seja justa e isonômica” pedem a retirada dos incentivos regionais, contudo não dizem claramente que é isto que querem.
Diz o texto: “Precisamos da exclusão imediata dos parágrafos 3, 4 e 5 do artigo 19 da reforma tributária, que representam um retrocesso do ponto de vista tecnológico e ambiental, além de uma renúncia fiscal prejudicial ao desenvolvimento do País”.
E mais não dizem, provavelmente para não provocar repulsa às suas marcas por parte de consumidores do Nordeste, a região que seria mais beneficiada – ou prejudicada por sua retirada – pelo mencionado artigo da PEC 45, pois segundo entendem as três montadoras multinacionais sudestinas o incentivo regional até 2032 prejudica o desenvolvimento nacional.
Narrativas opacas
As empresas pagaram por um anúncio para criar a narrativa de que contribuem para o desenvolvimento nacional mas estão sendo injustiçadas pela falta de isonomia tributária no Brasil.
Dizem que a indústria automotiva está instalada do Oiapoque ao Chuí – o que é óbvia inverdade –, mas concentram por mais de seis décadas a maior parte de seus investimentos bilionários em um único Estado: São Paulo, onde também já tiveram incentivos e atualmente gozam do conforto de fornecedores próximos, das melhores rodovias e da melhor logística possível – o que certamente não é isonômico no País todo.
Contudo não há como saber o quanto esta localização no Sudeste beneficia ou prejudica as empresas, pois todas escondem seus custos e lucros sob o argumento de serem corporações estrangeiras que só divulgam resultados financeiros globais; algumas se recusam até a divulgar o número de veículos que produzem. Esta opacidade deveria ser proibida na concessão ou cancelamento de qualquer incentivo tributário brasileiro.
Bem mais claro em defesa de seu território, ainda que em prejuízo dos outros, foi o Ciesp, Centro das Indústrias do Estado de São Paulo, que, também na semana passada, divulgou nota chamando a extensão dos estímulos tributários para Nordeste e Centro-Oeste de “privilégios indevidos usufruídos por fábricas já instaladas no País”, justificando que o incentivo deveria ser concedido apenas a fabricantes de veículos elétricos ou híbridos, o que na prática beneficiaria somente a BYD.
Na verdade os benefícios contemplam estes modelos também mas foram estendidos a carros flex ou híbridos flex, aumentando assim o escopo das isenções para Stellantis, HPE e Caoa que já têm fábricas em operação. Mas veículos exclusivamente a gasolina ou diesel ficaram de fora, portanto modelos Mitsubishi montados em Catalão, GO, e algumas versões dos veículos Jeep e Ram produzidos em Goiana, PE, não gozarão mais dos incentivos depois de 2025.
Perda ou ganho?
O Ciesp em sua nota volta a citar documento do TCU, Tribunal de Contas da União, que calcula em R$ 5 bilhões por ano o custo da renúncia fiscal a montadoras no Nordeste e Centro-Oeste – vale lembrar que este valor não seria necessariamente arrecadado pelo Fisco se o imposto cheio fosse cobrado sem concessão de descontos, pois sem este instrumento de desenvolvimento regional provavelmente os investimentos na região nem teriam sido atraídos, as fábricas não teriam sido construídas e, portanto, não haveria nada a arrecadar.
A entidade industrial paulista também aponta, ainda citando o TCU, que os incentivos “entregam pouco de desenvolvimento regional aos territórios beneficiados” porque “não ocorreu a esperada aglomeração industrial no entorno das fábricas contempladas”.
Este argumento é desmentido por Goiana, PE, onde a Stellantis investiu R$ 11,2 bilhões para inaugurar, em 2014 [ainda como FCA], a maior fábrica de automóveis já construída no Nordeste, que hoje opera perto do topo de sua capacidade de 240 mil veículos por ano e emprega quase mil 15 mil pessoas nas linhas de montagem e nos fornecedores, que investiram junto com a montadora mais de R$ 1 bilhão em operações locais.
Segundo a Stellantis já existem cinquenta fornecedores em Pernambuco e eles já respondem por cerca de um terço do valor das compras de insumos e serviços da fábrica, que somam mais de R$ 3 bilhões por ano. Interessante pontuar que outro um terço dos gastos são com fornecedores instalados no Sudeste: no fim das contas o Nordeste incentivado também gera receitas para estes estados.
Também desmente o TCU um estudo da consultoria Ceplan, segundo o qual para cada R$ 1 de incentivo recebido pela Stellantis em Pernambuco houve retorno de R$ 5 em impostos recolhidos, isto sem contar outros benefícios à região como geração de riqueza, melhoria dos serviços públicos, educação e saúde – até a mortalidade infantil e a evasão escolar foram reduzidas após a instalação da fábrica em Goiana e sua cadeia de fornecedores.
Sim, o estudo da Ceplan foi encomendado pela Stellantis, mas todos os números e dados citados pela consultoria são públicos e checáveis. O desenvolvimento trazido pelo empreendimento é visível e inegável.
Ainda é necessário?
O que se discute agora é se os incentivos fiscais ainda precisam ser concedidos, quando a fábrica de Goiana está prestes a completar dez anos em atividade. A Stellantis defende que sim, pois segundo a empresa ainda é necessário melhorar muito a infraestrutura logística da região, que torna mais cara a produção lá por causa da maior dificuldade em receber componentes e despachar carros, a maioria para estados do Sudeste.
Também avalia que é necessário dobrar para cem o número de fornecedores locais, formando uma cadeia que poderia sustentar cerca de 100 mil empregos. A empresa estima que este cenário não será construído antes de 2030.
Aqui o problema é, novamente, a falta de transparência, pois a Stellantis trata como segredo o quanto é mais caro produzir um carro em Pernambuco por causa da logística difícil e distância de parte dos fornecedores. Mas o que se sabe é que a empresa tem apresentado bons resultados financeiros e lucros recorrentes na América do Sul.
Caso a extensão dos incentivos até 2032 seja retirada do texto final da reforma tributária a ser votado pela Câmara dos Deputados nas próximas semanas, também não está claro se a Stellantis irá reduzir investimentos em Goiana, onde pretende produzir seus primeiros veículos híbridos flex já a partir de 2024.
E se a extensão for aprovada como está, apesar das ameaças de praxe, também segue opaco se as montadoras instaladas em São Paulo vão reduzir ou cancelar investimentos. É tudo muito intransparente.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo.
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