Impulsionada por políticas de Estado que combinam legislação impositiva da tecnologia e incentivos públicos na Europa, China e com menos intensidade também nos Estados Unidos, a corrida para os carros elétricos provocou um rápido crescimento da frota em mercados incentivados e com isto os problemas começam a aparecer no mundo real das leis de mercado, nem sempre aderentes ao pensamento de legisladores e eletroativistas.
No último semestre de 2023 e neste início de 2024, os BEVs, battery electric vehilcles, começaram a motivar algumas más notícias, em uma combinação de redução da demanda em mercados importantes, retirada de subsídios na Alemanha, cortes de investimentos em novas fábricas de carros e baterias na Europa e nos Estados Unidos, produção abaixo das metas e alta desvalorização dos elétricos usados.
Ungidos no mundo desenvolvido como solução final para descarbonizar as emissões veiculares, os carros elétricos tornaram-se o principal destino de investimentos de dezenas de bilhões de dólares e euros dos maiores fabricantes do mundo. O problema é que os BEVs estão demorando mais do que era esperado para alcançar viabilidade comercial própria e desmamar de incentivos públicos, colocando em risco o retorno dos bilhões já investidos. É o velho mal de se colocar todos os ovos em uma única cesta – especialmente quando há outras cestas viáveis.
Alerta na Europa
Na Europa, primeira região do mundo onde a eletrificação ganhou corpo sustentada por legislação favorável e generosos subsídios de diversos governos, o alerta soou no maior de seus mercados, a Alemanha, que no fim de dezembro comunicou o cancelamento, um ano antes do previsto, de incentivos de até € 6 mil que concedia para quem comprasse um carro elétrico.
Após conceder mais de € 10 bilhões em incentivos a veículos eletrificados desde 2016, o governo alemão informou que não tem mais recursos no orçamento público para bancar a transição para os BEVs.
Com efeito a Europa registrou em dezembro o pior desempenho mensal dos carros elétricos desde antes da pandemia, em 2020. As vendas na região caíram 16,3% na comparação com dezembro de 2022. Na Alemanha o baque foi o pior: a retração nas compras de BEVs foi de 48% em relação a um ano antes, e os híbridos caíram 74%.
O resultado negativo joga mais uma vez dúvidas sobre a viabilidade de cumprir a legislação da União Europeia, que estabeleceu, até 2035, o banimento total de veículos alimentados por combustíveis fósseis. Já há gente graúda na indústria que admite um possível adiamento desse prazo.
A Volkswagen, maior fabricante europeu, para superar o escândalo da fraude nas medições de emissões de seus motores diesel, apostou todas as suas fichas nos BEVs. A empresa adotou plano com ambição de ser o maior produtor mundial deles, mas faltou combinar o jogo com a concorrência dos chineses.
No fim do ano passado, após interrupções de algumas linhas de produção de elétricos, o CEO Thomas Shaefer admitiu que a empresa precisa mudar de estratégia. Coincidência ou não, a Volkswagen cancelou investimento de US$ 2,2 bilhões que faria em uma nova fábrica de BEVs na Alemanha.
O mercado europeu é o segundo maior do mundo para os BEVs, em 2023 concentrou 22% das vendas globais, com 2 milhões de unidades, com vistoso crescimento de 27% sobre 2022, mas que começou a apresentar retração no fim do ano passado, abrindo uma até então inédita guerra de preços que puxa para baixo a rentabilidade e o valor dos usados.
Nos Estados Unidos e na Europa a Tesla adotou seis reduções de preço de seu carro mais barato, o Model 3, que começou 2023 custando US$ 47 mil e terminou o ano em US$ 39 mil no mercado estadunidense. Para compensar o fim dos incentivos na Alemanha a Volkswagen criou um “bônus ambiental” de mais de € 7 mil para quem quiser levar um ID.3 para casa, e de € 7,7 mil para o ID.4. Por certo o desconto está sendo sustentado por corte de lucro ou aumento de prejuízo.
Sempre mais cético em relação aos elétricos o CEO do Grupo Stellantis, Carlos Tavares, chamou o cenário de “banho de sangue”, afirmando que as reduções podem levar fabricantes ao colapso: “Conheço uma empresa que cortou brutalmente os preços e a sua rentabilidade entrou em colapso. Quando você faz isso pula em um oceano vermelho, as coisas ficam muito difíceis no futuro”.
Revés nos Estados Unidos
A GM, que vende ao público e aos seus acionistas os BEVs como solução única e final para o futuro de seus veículos, diante de demanda muito menor do que a alardeada, reconheceu que não conseguirá atingir seu plano de produzir 400 mil carros elétricos até o meio de 2024, porque vendeu apenas 100 mil no segundo semestre de 2023.
Em outubro a empresa divulgou que irá atrasar em um ano a construção de uma fábrica de picapes elétricas em Detroit, berço da indústria automotiva nos Estados Unidos.
Em novembro foi a vez da Ford divulgar más notícias: a empresa informou que vai revisar ou atrasar investimentos em veículos elétricos da ordem de US$ 12 bilhões, que foram anunciados meses antes, em fevereiro. A fabricante justificou o movimento pela demanda abaixo da esperada por modelos eletrificados.
Em ato contínuo a Ford também anunciou o primeiro alvo dos cortes: a redução do investimento de US$ 3,5 bilhões em uma fábrica de baterias a ser construída no Estado de Michigan.
O expressivo crescimento anual, em 2023, de 50% nas vendas de BEVs nos Estados Unidos foi registrado sob uma base de comparação baixa e ainda esconde um mercado quase de nicho, de 7,7% do total de 15,5 milhões de veículos novos registrados.
Às custas de incentivos governamentais e cortes de preços pela primeira vez, o país das enormes picapes a gasolina superou a marca de 1 milhão de carros elétricos vendidos no ano, foram quase 1,2 milhão deles, mais da metade, 55%, modelos Tesla.
Analistas avaliam que após o salto de 2023 a expansão dos BEVs tende a arrefecer nos Estados Unidos. As muitas startups fabricantes de veículos elétricos que surgiram no país na esteira do sucesso da Tesla chegaram a valer especulativos bilhões de dólares antes de produzir um carro sequer, mas agora pagam o preço das promessas que não conseguiram cumprir aos investidores. Dezoito empresas do setor que abriram capital em bolsa correm o risco de chegar ao fim de 2024 sem caixa. Três delas já entraram com pedido de recuperação judicial.
Nem a Tesla escapa
Nem mesmo o ícone maior do eletroativismo veicular e maior fabricante de carros elétricos do mundo, cujo valor de mercado ultrapassou todas as grandes fabricantes de veículos, escapou das notícias negativas. Alguns dias atrás a Tesla divulgou resultados financeiros que decepcionaram os analistas de mercado.
Em 2023 a empresa do bilionário Elon Musk seguiu sendo a maior fabricante de BEVs, vendeu 1,8 milhão deles no mundo todo, mas por preços menores, perdendo rentabilidade, o que fez seu valor de mercado recuar US$ 94 bilhões nas duas primeiras semanas de janeiro, no pior começo de ano para a Tesla desde que abriu seu capital na bolsa, em 2010.
O crescimento já não é mais tão pujante e a concorrência chinesa está destruindo os lucros. As margens da Tesla ainda não muito altas mas sofreram queda acentuada no fim de 2023, recuando de 27,5% para 16,3%. No último trimestre do ano passado a empresa perdeu a liderança de vendas globais de carros elétricos para chinesa Byd, que vendeu 1,6 milhão de BEVs no mundo e cresceu deslumbrantes 73%.
Em recente teleconferência para apresentar os resultados da Tesla em 2023 Elon Musk acusou o incômodo da concorrência no cangote e reconheceu que “as fabricantes chinesas de carros elétricos deverão ter sucesso significativo fora da China” nos próximos anos. Homem mais rico do mundo e defensor do livre mercado, Musk deixou no ar um possível pedido de socorro aos governos ocidentais: “Francamente penso que, se não forem estabelecidas barreiras comerciais, elas [as chinesas] irão praticamente demolir a maioria das outras empresas no mundo”.
Mico na locação e na revenda
A Hertz, uma das maiores locadoras de veículos do mundo, citando redução na demanda por BEVs nos Estados Unidos, anunciou que desistiu de seu plano de comprar 100 mil modelos Tesla e, ao longo deste ano, vai se desfazer de 20 mil BEVs, um terço de sua frota de veículos elétricos, para trocá-los por carros a combustão mais procurados pelos clientes.
A locadora esperava aumentar seus lucros com a oferta de elétricos, apostando em atrair clientes dispostos a pagar diárias mais caras, e que a venda dos usados também fosse mais lucrativa. Mas aconteceu justamente o contrário. A realidade é que os clientes não querem pagar mais por um BEV, seja para alugar ou comprar um de segunda-mão.
Por outro lado a agressiva política de cortes de preços adotada pela Tesla também reduziu o valor de quem tem um modelo usado da marca, como é o caso da Hertz, que calcula perdas de US$ 245 milhões com a depreciação e desmobilização dos BEVs de sua frota.
Movimento parecido aconteceu na Europa onde a Sixt decidiu retirar todos os Tesla de sua frota.
Se está difícil alugar um carro elétrico mais difícil ainda é a revenda. Após o rápido crescimento da frota global na última década a indústria está lidando pela primeira vez com os BEVs usados – e os resultados são ruins.
Ao contrário dos já bem conhecidos veículos a combustão, avaliados pelo estado geral e quilometragem, ainda não há critérios claros para precificar um modelo elétrico de segunda-mão, no qual as baterias representam mais de 30% do valor e sua durabilidade é avaliada por ciclos de recarga.
Aliás este é outro problema: a frota de BEVs cresce mais rápido do que os postos de recarga, o que gera mais insegurança aos possíveis compradores.
Como se trata de tecnologia em evolução, os novos modelos estão cada vez melhores, mais baratos e com maior autonomia, o que também deprecia o mercado de usados, pois poucos arriscam comprar um BEV de segunda-mão, que na Europa está demorando mais de noventa dias para ser revendido e desvaloriza bem mais do que um modelo similar a combustão.
À agência Bloomberg o diretor de operações da Toyota Motor na Europa, Matt Harrison, disse que “simplesmente não há procura por veículos elétricos usados”. Dirk von Knapp, representante de concessionárias Volkswagen e Audi na Alemanha, afirma que “é preciso reduzir significativamente os preços apenas para que os clientes olhem para os veículos elétricos”.
Neste cenário preocupa bastante os cerca de 1,2 milhão de BEVs vendidos na Europa em 2021, a maioria deles por contratos de leasing de três anos que vão vencer este ano. Os clientes devem devolver esses carros que irão inundar o mercado de usados, aumentando o encalhe e desvalorizando ainda mais os preços.
China demolidora
Os problemas agora enfrentados pelos elétricos estão mais presentes na Europa e nos Estados Unidos. Na China o governo, que controla o mercado com mão-de-ferro, segue incentivando fortemente sua indústria de veículos eletrificados, forçando reduções de preços que começam a se espalhar pelo mundo e já incomodam os fabricantes tradicionais em seus próprios mercados.
Os chineses compraram 5,1 milhões de BEVs em 2023, em expansão anual de 21%. Os carros a bateria dominam perto de um quarto das vendas domésticas na China, que sozinha representou 57% do mercado global no ano passado, com tendência de expandir ainda mais esta fatia e espalhar seus elétricos pelo mundo.
Mas não sem problemas. No mercado doméstico BEVs usados e desvalorizados já começam a ser abandonados nas ruas das grandes cidades chinesas, segundo relatam agências de notícias. Ao mesmo tempo, fora do país, os grandes mercados da Europa e dos Estados Unidos já impõem ou estudam impor tarifação maior e barreiras comerciais para conter a concorrência de empresas chinesas.
Crescimento dependente de incentivos
As vendas de BEVs bateram o recorde histórico de 9 milhões em 2023, com crescimento de 29% sobre 2022 e participação em torno de pouco mais de 10% no total de 86 milhões de veículos vendidos no mundo. Fora da China, da Europa e dos Estados Unidos, o resto do mundo consumiu apenas 8% dos BEVs vendidos.
Ninguém nega o forte crescimento de participação dos elétricos até agora e nem se espera por grandes quedas nos próximos anos, mas fica claro que sem subsídios e incentivos os veículos a bateria perdem força porque ainda é uma tecnologia cara e em evolução, que não resolveu todos os seus problemas, principalmente o da infraestrutura de recarga insuficiente, incertezas sobre custo de reparos em caso de acidentes e alta desvalorização na hora de revender o BEV usado.
Após a euforia inicial sobre os carros elétricos como solução final para a descarbonização das emissões veiculares, está mais difícil conquistar a confiança do consumidor para algo que ele ainda não sabe se será um mico. Assim outras soluções menos charmosas voltam a ganhar chance de prosperar, como os biocombustíveis.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo
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