Eremildo, personagem idiota criado pelo jornalista Elio Gaspari em suas colunas para fazer questionamentos ingênuos, certamente perguntaria: Por que fabricantes de veículos querem investir mais de R$ 100 bilhões no Brasil? O cretino – tratamento usual de Gaspari a Eremildo – certamente não consegue entender como vão colocar essa montanha de dinheiro em um país que cresce pouco, com mercado de veículos estagnado que não avança o suficiente para justificar tantos aportes bilionários.
Começando a responder à pergunta pelo fim, para melhor entendimento de Eremildo: os fabricantes vão investir porque acreditam que vão lucrar mais com isso, produzindo carros mais caros. E se o plano não der certo e os lucros não vierem vão cortar ou adiar os planos de investimento – logicamente sem fazer publicidade disso.
É que Eremildo pouco ou nada entende de finanças, nem como a indústria automotiva instalada no Brasil se acostumou a viver com os muitos ciclos de alta e de baixa do mercado.
Na última década a crise econômica, de 2015 a 2016, e a pandemia, de 2020 a 2022, derrubaram as vendas para o atual patamar de pouco mais de 2 milhões de unidades/ano. Mais do que conviver com este cenário os fabricantes aprenderam a lucrar com ele, vendendo menos e lucrando mais por produto vendido.
As perspectivas apontam para crescimento lento do mercado brasileiro, mas ainda demora para chegar aos 3 milhões de veículos/ano – isto se nada der errado no caminho dos próximos dez anos. Portanto, no atual cenário, volume de vendas não é o fator preponderante para decidir sobre investimentos, mas sim o quanto é possível lucrar com o tamanho atual do mercado.
Esta estratégia é refletida na transformação do portfólio dos fabricantes nos últimos dez anos, com foco na produção de veículos maiores, mais potentes, econômicos, seguros, tecnológicos e… bem mais caros e rentáveis. Exemplifica este modelo de negócio um SUV compacto vendido a mais de R$ 130 mil. É assim que os fabricantes conseguiram depender menos do caixa das matrizes e até enviaram algum lucro para lá.
Caixa próprio e governo financiam planos
Outra questão é como os planos de investimentos serão executados e financiados. Desta vez as matrizes no Exterior vão ajudar pouco ou nada suas subsidiárias aqui, pois também precisam fazer aportes de bilhões de dólares e euros para transformar fábricas e produzir carros elétricos.
Então os investimentos no Brasil terão de ser financiados com a combinação de caixa próprio, crédito bancário, linhas subsidiadas do BNDES – que diz já ter separado R$ 300 bilhões para o NIB, programa Nova Indústria Brasil – e incentivos fiscais do Mover, o programa Mobilidade Verde e Inovação, que prevê a concessão de R$ 19,3 bilhões em créditos tributários em cinco anos, até 2028, para financiar projetos de desenvolvimento da indústria automotiva no País.
Pode até parecer muito, mas não é dadas as dificuldades colocadas para obter os créditos do Mover e as somas envolvidas. Para acessar todos esses incentivos a indústria deverá obrigatoriamente investir algo como R$ 60 bilhões, segundo calcula a Anfavea. É, portanto, um programa barato para o governo e pequeno para padrões de países desenvolvidos. Os Estados Unidos, por exemplo, separaram US$ 50 bilhões para incentivar sua indústria automotiva a desenvolver tecnologias de baixa emissão.
Vêm aí carros mais caros
Mesmo que, em um comparativo global, não seja tanto dinheiro assim o que se pretende aplicar aqui, para os fabricantes de veículos e autopeças, sem ajuda das matrizes, será essencial que o Mover pare de pé para financiar, ao menos em parte, os recursos necessários para atender o maior rigor da legislação de emissões e segurança no País, e, ao mesmo tempo, desenvolver produtos que continuem sendo rentáveis.
O que não para de pé é o discurso de que os investimentos vão trazer ganhos de escala na produção e, com isto, a indústria poderá atender a imensa demanda reprimida de consumidores brasileiros ávidos por comprar carros novos mais baratos. Nem Eremildo, o idiota, está convencido disto.
Ao contrário do que aconteceu no início dos anos 2010, quando os fabricantes de veículos leves divulgaram programas de investimentos de US$ 20 bilhões no Brasil – coincidência ou não, pelo câmbio atual o valor é similar ao anunciado agora –, desta vez as empresas não precisam atender um mercado crescente e ampliar capacidades de produção, pois têm mais do que o suficiente, nem vão investir em carros populares de baixa qualidade.
Em comum a todos os investimentos já anunciados até agora está o desenvolvimento de veículos de baixa emissão, com opção preferencial pelos híbridos flex, que combinam a propulsão elétrica com o motor bicombustível etanol-gasolina.
A opção é mais barata e economicamente mais vantajosa para o País – que tem etanol à vontade – do que a adoção de modelos elétricos puros, movidos por baterias caras e importadas, sem horizonte de produção nacional.
Contudo um carro híbrido não custa e não custará menos do que um modelo só com motor a combustão, até porque agrega mais componentes, muitos deles também importados.
Baixa emissão pouco efetiva
Sem a ajuda dos carros híbridos e elétricos nenhum fabricante, com o portfólio de produtos que tem hoje, conseguirá atender às exigências de emissões de CO2 do próprio Mover e de poluentes do Proconve L8 – oitava fase do Programa de Controle de Emissões Veiculares para veículos leves, que entra em vigor a partir de 2025 com limites que vão sendo apertados gradualmente a cada dois anos, até 2031.
Mover e Proconve L8 instituem metas de emissões corporativas: cada fabricante terá de atender a uma média máxima levando em conta as emissões de todos os carros que vende no País. Com isto será obrigatório produzir veículos de baixa emissão para compensar aqueles que emitem mais, e assim deixar a empresa dentro da média exigida.
Alguns consultores já calculam que para atender a meta corporativa de emissões imposta pela legislação os fabricantes terão de, necessariamente, transformar em híbridos ou elétricos de 50% a 60% de seu portfólio à venda no Brasil. Em outras palavras é dizer que, até a virada desta década, mais da metade dos carros vendidos aqui serão mais caros do que os atuais.
Portanto, sem o atrelamento de um programa de renovação de frota, para subsidiar a troca de veículos velhos por novos, o programa de redução de emissões terá pouca efetividade para reduzir as emissões de poluentes e de CO2, gás de efeito estufa, pois os carros de baixa emissão, por seu custo mais elevado, terão pequena e lenta penetração de mercado.
Em resumo, o País corre o risco de produzir modernos veículos de baixa emissão, híbridos e elétricos, sem de fato conseguir reduzir as emissões de sua frota. Por certo Eremildo segue muito confuso com tudo isso.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
Foto: Divulgação.
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