Uma mudança histórica de valores está em curso na transição de liderança da indústria automotiva global promovida pela China, que em apenas vinte anos tornou-se o maior mercado de veículos do mundo com a ajuda dos principais fabricantes ocidentais e agora alça voo solo de dominação global com suas próprias marcas e tecnologia – e não mais só dentro de seu gigantesco mercado mas também fora dele.
Conforme aumenta de forma exponencial a presença global com exportações e fábricas dos maiores produtores chineses de veículos – a maioria estatais – também crescem no governo chinês preocupações com as consequências dessa abertura para o mundo.
Em julho, segundo reportou a agência Bloomberg, o Ministério do Comércio afirmou que o país deve proteger seu conhecimento na produção de carros eletrificados e para isto deve priorizar investimentos no exterior somente em linhas de montagem CKD, com todos os componentes importados da China. Também foi aconselhado evitar aportes em países com riscos geopolíticos, citando Índia e Turquia, mercados nos quais fabricantes chineses têm planos de produção local.
Esta é uma fantástica inversão de posicionamento no cenário global da indústria: por anos a fio sendo acusada pelos fabricantes ocidentais de copiar seus carros e tecnologias, agora é a vez da China proteger o conhecimento de sua indústria, que com fortes estímulos e incentivos do governo se especializou no desenvolvimento de veículos híbridos e elétricos com domínio de toda a cadeia de produção, incluindo matérias-primas, baterias, motores elétricos e gerenciamento eletrônico, garantindo preços mais baixos imbatíveis pela concorrência.
Expansão de capacidade externa
A preocupação do governo chinês decorre da rápida e vertiginosa expansão de seus fabricantes para fora do país. A imposição de barreiras comerciais e tarifas mais altas na Europa e nos Estados Unidos vem forçando algumas das maiores montadoras chinesas a investir em fábricas no exterior com processos completos de produção, que ao contrário das linhas CKD têm áreas de estamparia, funilaria, pintura e montagem final, com diversos fornecedores locais.
Segundo levantamento da Bloomberg NEF, braço de pesquisa da agência de notícias, até 2023 os fabricantes chineses tinham construído ou programado fábricas completas em nove países com capacidade somada de 1,2 milhão de veículos por ano. De lá para cá, com os anúncios já feitos desde o ano passado até agora, em 2026 a capacidade externa deve mais que dobrar para 2,7 milhões/ano em mais de uma dúzia de países.
“À medida que o mercado de veículos elétricos na China fica saturado, a crescente concorrência doméstica e o excesso de capacidade estão empurrando as marcas chinesas para o exterior em busca de novos mercados em crescimento”, diz o relatório da Bloomberg NEF.
Somente BYD e as estatais Chery, Changan, GAC e SAIC anunciaram, de 2023 até agosto passado, dez novos projetos de expansão internacional.
Ao mesmo tempo as unidades de montagem CKD em outros países – modelo que o governo chinês diz preferir no momento – têm expansão bem mais moderada: linhas próprias ou em associação com parceiros estrangeiros somavam capacidade global de montar com peças importadas 2,2 milhões de veículos por ano e até 2026 este volume deve crescer para 2,8 milhões/ano, segundo o mesmo levantamento da Bloomberg NEF.
Mercados mais visados
Os mercados mais visados para a instalação de novas fábricas atualmente são Indonésia, Tailândia e Brasil. Também estão no radar outros países do Sudeste Asiático, Oriente Médio e América Latina. Em comum são locais onde os chineses enfrentam menos resistências e, além das indústrias em si, também têm projetos de exploração de matérias-primas para baterias.
O Brasil está nesta estatística com as fábricas já anunciadas por BYD e GWM, que vão começar a produzir, em 2025, com linhas de montagem SKD, de veículos que chegam semidesmontados, e CKD, com a maioria das partes importada da China.
Mas há outros interessados como SAIC, GAC e a Chery – esta última já foi a primeira, em 2014, a inaugurar linha industrial no País, em Jacareí, SP, depois se associou ao Grupo Caoa, fechou a unidade em 2022 e agora tenta retomar a operação brasileira com as marcas Omoda e Jaecoo.
Na Europa as negociações para novas fábricas se complicaram após a decisão da União Europeia, em outubro, de impor sobretaxação aos veículos eletrificados chineses. O imposto de importação para estes carros era de 10% e agora, dependendo do fabricante e do montante de incentivos que recebe na China, pode chegar a 45%.
A BYD anunciou planos de investimento em fábricas na Hungria e Turquia, para acessar os mercados da União Europeia. A Polônia negocia a instalação de uma planta de baterias de fornecedor chinês e quer se tornar alternativa para fabricantes de veículos eletrificados. Espanha e Itália tentam atrair investimentos de Geely, dona da Volvo, Donfeng, SAIC e Xpeng.
Mas após a sobretaxação o governo chinês está aconselhando suas empresas a reduzir o volume de investimentos em países europeus, especialmente naqueles que votaram a favor do aumento de imposto de importação, caso de Itália, Polônia e França, e de doze outros países membros que se abstiveram, incluindo a Espanha neste bloco. Alemanha e Hungria foram contra a medida.
Arapuca chinesa
A política industrial chinesa atraiu ao país, nos últimos 25 anos, dezenas de fabricantes de veículos ocidentais como Volkswagen e General Motors, além de marcas do Japão e da Coreia como Toyota e Hyundai. Todos chegaram como sócios meio-a-meio de empresas estatais e por mais de duas décadas lideraram as vendas na China, enquanto as montadoras chinesas, estimuladas pelo governo, aprendiam a fazer carros e evoluíram na direção da eletrificação, com elétricos e híbridos.
Embora tenham ganhado muito dinheiro e não desconhecessem as intenções chinesas, os fabricantes estrangeiros acabaram caindo numa arapuca econômica: sabiam que para crescer globalmente precisavam explorar o enorme mercado chinês, mas também sabiam que os enormes ganhos não iriam durar para sempre. A estratégia foi a de ganhar enquanto fosse possível em vez de deixar de ganhar.
Há dez anos as marcas chinesas, mais de trinta delas, tinham algo como 18% do mercado da China e as exportações não passavam de poucas milhares de unidades por ano, enquanto uma dezena de estrangeiros com suas associações, joint ventures, com estatais, que não podiam exportar, dominavam as vendas domésticas, com Volkswagen associada à SAIC e FAW no topo do ranking.
Hoje a situação se inverteu. Fabricantes chineses dominam seu próprio mercado e tornaram a China, este ano, o maior exportador de veículos do mundo, enquanto as marcas estrangeiras, que agora já podem exportar, estão perdendo terreno.
A Volkswagen é um exemplo emblemático desta inversão: foram mais de duas décadas de prosperidade que resultaram em 39 fábricas do grupo com três joint ventures no país, incluindo SAIC, FAW e JAC, que produzem modelos Volkswagen, Audi, Skoda e Cupra.
Mas este ano a fabricante perdeu a liderança de vendas para a BYD. Em cinco anos a participação de mercado das marcas do grupo VW caiu de 20% para 14,5% e a rentabilidade declinou à metade justamente no momento em que a empresa enfrenta uma das mais severas crises de sua história.
O lucro operacional do Grupo VW na China, que em 2014 e 2015 atingiu o pico de mais de € 5 bilhões por ano, desceu à metade em 2023, para € 2,6 bilhões, e a estimativa é de nova queda de 33% este ano, para menos de € 2 bilhões pela primeira vez desde 2010. Continua sendo um bom ganho, mas em tendência de declínio e insuficiente para cobrir os prejuízos da empresa.
“Há anos era claro que a Volkswagen teria problemas com sua confiança na China”, comentou ao Financial Times um ex-executivo da companhia. Talvez ele próprio tenha sido um dos beneficiários dos gordos bônus que a companhia pagou aos seus diretores pelos altos lucros do grupo impulsionados pela forte aposta na China. Agora os chineses querem ganhar.
Foto: Divulgação
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