As paradas de produção causadas por falta de semicondutores – e de outros fornecimentos afetados pela desorganização da cadeia global de suprimentos após a pandemia de covid-19 – já soma mais de 500 mil veículos perdidos, desde 2021 até maio passado, segundo cálculos da própria associação dos fabricantes, a Anfavea.
O problema aprofundou uma estratégia que já vinha sendo percebida no mercado brasileiro: o foco na venda de produtos mais caros e rentáveis. Isso criou uma espécie de semimercado, um cercadinho elitizado de compradores, abaixo do potencial do País.
Esse movimento já era uma tendência mesmo antes da pandemia, mas foi agudizado para níveis nunca antes vistos. Por causa da falta de componentes e produção abaixo da demanda, os fabricantes direcionaram os chips que conseguiram para produzir os modelos mais caros, que trazem mais lucro – e que ficaram ainda mais caros após os constantes reajustes de preços motivados pelas altas aceleradas dos custos e da inflação.
Preço média na alturas, agora cai
A estratégia fez sumir das revendas os poucos carros abaixo de R$ 70 mil que ainda restam nos portfólios dos fabricantes – e mesmo estes já são muito caros para a maioria dos consumidores brasileiros. O preço médio de venda de um automóvel no Brasil saltou quase 30% de 2020 a 2021, fechando o ano passado em R$ 112 mil, segundo monitoramento da Jato Dynamics. Em março deste ano o valor chegou ao pico de quase R$ 134 mil.
No entanto, o mesmo levantamento da Jato sugere que essa estratégia está chegando a um ponto de saturação. Após o pico de março, em abril o tíquete médio começou a cair, para quase 131 mil no fim daquele mês e baixou mais um pouco, para R$ 130 mil, em maio.
Sim, os preços dos carros continuam nas alturas, mas o valor médio de venda aponta para baixo pela primeira vez nos últimos três anos.
“É preciso confirmar esse movimento ainda, mas ao que parece há um aumento da oferta e das vendas de versões mais baratas dos automóveis mais demandados, o que puxa a média para baixo”, avalia Milad Kalume Neto, diretor da Jato.
Queda de renda e vendas diretas
Dentre as possibilidades no horizonte, a queda de renda, subtraída por inflação e juros altos, pode estar começando a fazer efeito também em parte das camadas mais abastadas da população, fazendo cair as compras de carros mais caros. Ou, ainda, esta mesma classe de alta renda já comprou carros suficientes no movimento que ficou conhecido como “consumo de celebração” pós-pandemia.
Esse semimercado pode ter ficado saturado e dividido com outras possibilidades de gastos que se abriram, como viagens internacionais que tinham ficado muito limitadas com a covid-19.
Existe outro indicativo de que o mercado ruma para redução das vendas de varejo, com saturação das compras de maior valor, e aumento das vendas diretas a frotistas, como locadoras, que dizem ter demanda para comprar cerca de 700 mil veículos para renovar suas frotas, com produtos de menor valor.
Com a redução da demanda dos consumidores nas concessionárias, os fabricantes de veículos começaram a atender as encomendas represadas das locadoras, que também vêm aumentando seus negócios de locações de longo prazo, com planos de assinaturas de veículos. A inversão das vendas em favor de frotistas já vem sendo observada nos últimos dois meses, justamente no período que houve queda no preço médio de venda.
Em maio, as vendas diretas corresponderam a 48% dos emplacamentos do mês, o equivalente 83,9 mil automóveis e comerciais leves, volume que representa crescimento de 6,3% contra maio de 2021. Já o resultado do varejo, 52% dos negócios, 90,9 mil unidades, foi de queda de 5,7% na comparação com as compras feitas em concessionárias no mesmo mês do ano passado.
No acumulado de janeiro a maio as vendas diretas têm peso seis pontos porcentuais menor, 42%, equivalentes a 288 mil carros e utilitários, em queda de 20% sobre o mesmo período de 2021, enquanto as compras no varejo somaram 398 mil unidades, 58% do total de emplacamentos, e caíram menos, 16,6% na comparação anual.
Mudança de perfil
Esse balanço indica uma mudança no perfil do mercado, onde o cenário econômico adverso ao consumo começa, enfim, a fazer mais efeito do que a falta de semicondutores que manteve a oferta abaixo da demanda por mais de um ano.
Com tantas distorções e acontecimentos adversos, fica difícil saber qual é, de fato, o real tamanho do mercado brasileiro de veículos, que mal deve passar de 2,1 milhões de emplacamentos este ano. Mas uma coisa é certa: pode ser muito maior do que isso, até o dobro, quando e se a renda da população voltar a crescer e os preços voltarem para níveis mais compatíveis com essa renda – o que parece improvável no horizonte de curto e médio prazos.
* Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
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